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Loucuras

por vítor, em 03.09.19

Quando cheguei, atraquei de mansinho ao porto – há que oferecer a quem nos espera a ternura da beleza – e saltei da embarcação que me conduzira com uma desenvoltura que me surpreendeu: a velhice lentifica tudo, e tudo aproxima da horizontalidade os dias da proximidade ao indizível silêncio que nos espera. Às gaivotas dolentes, lancei o meu olhar humano de superioridade vulgar e continuei ao encontro do nada embrulhando-me nas ruas estreitas e escuras que deixavam as águas do mar para trás. As ruas que me tragaram de imediato como se engole um engodo pensando do próprio isco se tratar. Uma música ricocheteava nas paredes sujas e gastas da cidade que me conduziam os passos. Os passos e a alma. A alma que se limitava há anos a seguir-me como canídeo obediente e fiel. Domesticada, arrastada pelos caminhos que o destino traçara. Destino de que troçara quando o corpo jovem e cruel rompia a vida caminhando nos limiares resvalantes dos abismos. Corpo e alma correndo por entre as labaredas flamejantes em cavalgadas irregulares e insanas. Corpo cavalgando o desejo da carne, alma navegando as alterosas ondas da inquietude existencial. Uma alma estrangeira, desejando o impossível das desassossegadas tentações, ampliando as liberdades de quem quer o infinito. Quando, cansados da longa correria e da solidão dos caminhos divergentes, pararam e se encararam como nunca fora possível, a alma exaurida conformou-se à sua sorte: o conforto do veículo que a acolheria. A segurança do corpo envelhecido.
Um tango antigo soltava-se da porta de uma taberna escondida. Um corvo acorrentado habitava uma tabuleta com o nome do estabelecimento. Loucuras, disse o corvo. Loucuras, a tabuleta. Entrei, invadindo a penumbra quieta do interior do tasco. Subitamente, a minha alma soltou-se de mim e juntou-se ao corvo no alto da tabuleta. Loucuras, era o nome do corvo. Loucuras, foi o que minha alma lhe pediu.

Monte Gordo, 17/1/2019

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publicado às 22:15

Um Admirável Mundo Novo

por vítor, em 03.09.19

Eu vi os melhores da minha geração soçobrando, vergados, por debaixo das grandes cidades, respirando o fumo tóxico da civilização, renegando as árvores e os pássaros, eu vi-os, mesmo agora, transportando a vilcracia que os escraviza e seduz, incompletos, como serão sempre os deuses que negociam a liberdade. Eu vi-os, e vejo-os, todos os dias, quando acordo devagar e a vida sem amarras me convida a renascer. A procurá-la... eu conheci os tempos sem deuses que libertavam os transeuntes sem finalidade, entrando nos caminhos que tinham sido desenhados por outros, alargando os espaços entre as bermas que se fechavam perante os vossos passos. Não, não é esse o caminho que os pássaros traçam nos ares e projetam na poeira acumulada nos teus dias, nem o caminho que quiseram que seguisses. Eu vi nascerem do nada, sem que algo os suportasse, os fabricasse, os novos deuses que te controlam a vida, que nos ensinam, com gentileza, a troco da tua alma, da tua vida guardada em pastas encriptadas no frio das catacumbas digitais. Tudo apodrece dos dedos que manipulam os dados genéticos do universo, uno e poliédrico, desmaterializado, incompreensível e claro como 1 0 1. Algoritmos! Logaritmos! IA, realidade aumentada, google, facebook, whatsApp, twiter, aplle, Microsoft, snapchat, instagram, huawei; hachers chineses e russos e húngaros e americanos e fake news e deepfakes, explorando as almas até aos confins do que existe e existiu, aspergindo de silêncio a memória dos teus antepassados. Eu vi as catedrais serem ocupadas por descrentes, por homens e mulheres que atravessaram continentes e oceanos sem se aperceber disso, como autómatos embalados em cápsulas siderais. Os peixes ocuparam os ministérios e nadam por dentro de corais de papel, corais de filigrana tecidos por homens e mulheres de antanho, invisíveis, ocultos por mangas de alpaca, esmagados pelas novas tecnologias, pelas insensíveis vontades de poder. Eu acompanhei a perdição e a decadência dos burgueses desorientados perante os tempos novos, arrastados pelas correntezas inescrutáveis do mundo cibernético. Construtores de sociedades e donos e senhores do capital e da moral, atirados dos penhascos mais altos da ignomínia: homens e mulheres de família, respeitadores dos valores da moral e da religião esculpida nos genes, serenos, conservadores como as árvores de grande porte, amantes do risco calculado, homens de automóveis alemães e ingleses frequentando meretrizes espampanantes em cabarets canonizados, acumulando ações de companhias certificadas para os filhos espatifarem e os netos recuperarem, homens com profissões imorredoiras que se herdavam como as cores dos olhos e das peles, homens para quem a mudança era uma pedra entre a vida e a morte, uma mancha imergindo nas águas contaminadas da paixão sem fim. Tudo apodrece e fenece nos palacetes decrépitos da burguesia onde tudo tinha um dono e um patrão: os bancos desfazem-se como pó ao vento Norte, as ações são produtos tóxicos que deixam um rasto de lesados chorando no asfalto, nada se mantém e tudo acelera sem se ver, rapazinhos tomam conta do capital a partir das garagens dos pais que, como Édipo, estão a assassinar, as empresas deixam de ser familiares e unipessoais e são canibalizadas por fundos párias, a volúpia do jogo toma conta dos investidores, o abismo e a pirueta sem rede são o desígnio da economia. Compra-se e vende-se o que não existe, antecipa-se o lucro e a ganância é o motor da acumulação. É preciso ir mais longe: não há profissões, tudo muda a todo o momento, as sensações são para ultrapassar constantemente sem cessar: hotéis de 23 estrelas, viagens interestelares, experiências únicas num mundo físico finito e descontrolado: as águas sobem como no Dilúvio, os elementos enfurecidos açoitam a natureza que desaparece. E o novo homem, snifando uma linha de coca num 57º andar duma torre de babel desenhada por um artista extraordinário, sorri. Ninguém sabe quem ele é. O mundo e a sociedade são um plasma tóxico sem valores, sem moral e sem ética. Um mundo vigiado por cookies. Só o prazer de ponta conduz a humanidade. Apps conduzem-te ao prazer sem desejo. O Everest está pejado de gente, as ilhas Phi Phi, na Tailândia, inundam, selvaticamente, as redes sociais, o Tal Mahal e as envenenadas terras de Chernobyl contendem pela selfie do ano. Veneza afoga-se. O plástico torna-se omnipresente como os deuses. Eu vi, e vejo, e continuarei a ver, impotente como Deus, o vírus humano a contaminar tudo à sua volta. E tudo voltará a ser como dantes como quando eu não existia. No silêncio que sobeja das grandes tempestades.

Cativa, 15 de julho de 2019

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