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Como vaga de um mar sem fim, a mortalha do poeta cobriu de espanto o pântano das cidades sobrenaturais, e o sangue do cadáver tatuou a vetusta cobertura, revelando o sudário sagrado, o santo sudário ardendo na orla do deserto, escorrendo da lâmina que desenha a silente cumeada do abismo, labirinto onde as hienas desesperam para lamber o desenho morno das palavras, as facas reluzem nas sombras inúteis da tempestade, onde as multidões se atropelam em outlets negociando, a preços de saldo, amor e amizade. Agarro o pano aconchegante da morte e arrasto-o até ao peito, sinto frio nos pés, encolho-me como um político mal nutrido, vagabundo na podridão das insinuantes serpentes, e lanço o olhar através da memória superficial dos outros: a visão que me assombra vem, venenosa e nevoenta, refazer a realidade e mostrar às pedras que me conduzem a caminhada, a linha da vida que traçarás na erva curta que te servirá de alimento e leito. A partir de agora, não desejarás o que te não pertence, não mais poderás atingir a eternidade que a morte contém e guarda. Há de o vento soprar com violência e os sonhos cristalizar no medo. Nascerão, depois de tudo o que conheceste, crianças todos os dias.
Vn Famalicão, 24/12/2018
E porque as festas estão por todo o lado. E porque ninguém consegue fugir do tempo. Uma boa sugestão para "a passagem das horas". Suas e dos seus. Não é um obra nova, mas é uma nova obra. Tinha sido publicada digitalmente num projeto muito interessante, escritores on-line, que não sei o que lhe aconteceu, e, por isso, publiquei-a aqui. Recebe-se, em papel, em casa.
Devolve-se o pecúlio dispendido se a obra não convencer...
Já não era sábado, mas também ainda não era domingo. A hora mudara agora mesmo, como sempre acontece quando a estação das carraças se inicia.
Isto perturbava o camaleão acinzentado como noite incompleta:não as carraças, que não lhe interessavam para nada, não lhes apreciava o sabor acre, nem a crocante quitina, e não tinha problemas com a sua agressividade doentia. E a amabilidade era-lhes, aliás, correspondida: não as atraía o sangue frio e a pele viscosa.
O que o preocupava, realmente, era a imprecisão do tempo. Se a noite avançava como sempre. Se a liquidez do devir se transmutasse na ciclicidade prescrita. Se a noite, inexorável, regia o sono merecido dos que, como ele, usavam os dias para manter os corpos e garantir o futuro.
Procura sem a ânsia
de seres grande, procura sem cessar
o que não entendes.
O que não precisas. As sementes dos santos.
Levanta-te ao encontro da solidão honesta
e vã, desenha em ti a podridão do novo
como como se tudo emergisse
das ideias confusas da singularidade,
dos caminhos já trilhados
por outros, da cegueira obscena
e sôfrega de sangue virginal.
O que encontramos são murmúrios
só entendíveis a iniciados nas longas
procissões de vagabundos
à procura
das areias escaldantes, da nauseabunda e escarlate
mãe de todas as dores. As dores que apoquentam os mortos.
Murmúrios conspirativos renegando o passado
perdido atrás de paredes transparentes,
o oculto transgressor rompendo
o discurso básico dos profetas. Enigma
de antanho onde a memória
emerge dos pés mergulhados em cerimónias
do esquecimento, escaldantes, brasas rasgando as vestes
dos risos alarves, xamânicos, onde os rostos
de cadáveres orgulhosos são possuídos
pelo medo convulso das tardes. Procura os que te
arrastam até ao fim das sombras do desejo.
Monte Gordo, 3-11-2016
se o ódio se adianta
e te prescreve a dor,
doma-o e sai para a rua,
grita como se o labirinto
que as flores desenham
no torso da nuvens
se rasgasse
em cicatrizes invisíveis
ao sentido dos duendes imorais,
grita até sentires
o eco das paredes
te atirarem no precipício
da carne a latejar de desejo
se o ódio persistir, enraivecido,
regendo os medos e as sombras,
sai do teu corpo e abandona
o odor crepuscular,
o rumor brando das entranhas,
deixa-te levar por entre as casas
do lugar, por entre a claridade
que atravessa os dias
tatuados nos sonhos incandescentes
do profeta desconhecido
estranhos tempos estão encantando
o coração das cidades, as guelras dos peixes
emergindo das redes sociais,
saudando o ódio que nos enforma
e conduz, as esculturas de lixo
rasgando a pele de animais degolados
ao entardecer, sangrando palavras
Se dormisses como dormias antes de ter atravessado o rio que dividia a tua juventude do resto da tua vida, serias capaz de entender os sonhos que agora se recusam em aparecer nas sombras da noite. O que quer que fosse, não te traria a juventude de volta.
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