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Um dia grande

por vítor, em 16.08.18

 

Hoje, o dia será tão grande que ainda não nasci.
Foi hoje mesmo que Timoteo introduziu a 12.ª corda da lira
E o menino Mozart, depois de ter tocado cravo de olhos vendados para a corte aparvalhada, pediu Maria Antonieta, futura rainha
de França, em casamento (quando voltou a Paris já homem, ninguém lhe ligou peva).
Possivelmente o dia nem terminará enquanto não desceres até ao teu mundo interior,
À grande sombra da solidão dos outros. Poderá vir a ser o dia em que utilizarei
a inutilidade como meio de transporte até ti. Chegar a ti sem chegar a lado algum.
Fui lendo e interpretando a linguagem das nuvens refletidas no fundo do mar para passar o tempo que restava no dia dos dias. Sou o homem fantasma e viajo de mota
Pela estrada do pensamento pré-cartesiano, onde tudo pode existir sem existir e as personagens mais reais são as que nunca passaram de sombras ténues duma luz irreal.
Só a mota, sem mim, parece atravessar o emaranhado de vias, viadutos e túneis que M. C. Escher gravou a fogo nas minhas mãos. Sou o homem fantasma que vive nas páginas de Ovídio. Argonauta a caminho da Geórgia na procura do manto sedoso que nos há de trazer a riqueza inesgotável. O homem que previu o que aconteceria quando Einstein pusesse
a potência no C da fórmula das fórmulas: bocejou e foi dar um beijo na mulher, que sorriu como a Mona sorriu pela primeira vez a Leonardo.
O dia, como nos esquecemos tão facilmente das coisas desproporcionadas, avançou bruscamente (só por isso o percecionámos) anunciando o meu nascimento ao final da tarde. Quando nasci, já Nietzsche vivia na minha cabeça, depois de ter conhecido o cavalo de Turim e de ter adormecido na véspera do dia que nos transporta até hoje.
O chicote sibilino do cocheiro de VERDI lambeu a calote visível, the other side of the moon, do meu cérebro e fez-me navegante no dia que não tem fim.

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publicado às 16:54

a vida que me espera

por vítor, em 16.08.18

Há água, outras vezes fogo, muitas vezes fogo, na frente de um pente saltando à corda no quintal
de um parente de província. 
Uma máquina de café ampara uma faca e uma colher…
Tiro um café e a faca reage
ameaçadoramente fazendo-me a barba à escovinha.
Não sentes o odor a pintelho que sopra do 1.º andar?
Tomo o café… a sombra das cigarras
envolve o pescoço das liceais leitosas e púberes. Gostosas!
Moças sem rosto, de mamas sentadas na maldição
da poeira incandescente.
O problema não é com os sacanas, com os que saltam
de costas para os precipícios da fé, é-o com
Os que acreditam que são tão bons quanto
Os que dançam nus na tempestade, os que roçam
O vento e naufragam nas noites de sangue.
O café desaparece, frio, no quintal do meu tio-avô
E as malabáricas proezas do pente transferem-se 
Para o cabelo rebelde da maresia que emerge
Das sombras das cantoras da tarde.
De barba aparada e penteado cruel, saio para 
A vida que me espera no comboio sem fim.

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publicado às 16:52

Bairro da Lata

por vítor, em 16.08.18

 

Na leitura da cidade ensandecida,
Os carros apodreciam na palidez dos subúrbios
Enquanto, aí, as mulheres comandavam o mundo
A partir de tijolos empilhados nos dorsos
Das encostas íngremes, que ninguém quis e agora
Toda a gente quer. As mulheres abandonadas gerem
O invisível dos dias, e parecem felizes. Felizes por carregarem
Os filhos pelas lamas das ruas ensandecidas. Os homens
Dormem sobre cadáveres mornos de ontem e escaldantes
De amanhã, dormem sem sequer sonhar, até no sono,
Leve e inquieto, são escravos da tristeza. As mulheres riem
Mesmo quando choram, mesmo quando os mortos lhes vêm bater à porta
E pousar nos braços robustos. Os homens dormem. Adormeceram
Depois dos tiros que ecoaram no ricochete das paredes escalavradas
E incompletas. Adormeceram depois da incontinência verbal das armas.
Dormem no medo eterno exibindo a ignorância que os cobre
E separa do real onde habitam de costas para a luz. As mulheres
Tecem a luz, manipulam o fora e o dentro, fazem café na escura 
Podridão para servir os amantes, buracos dentro de buracos,
Pais dos filhos dos pais, mães do vazio que as enforma, máscaras saindo de túmulos prenhes de entes poliformes e frios.
Criaturas doentes escorrendo sangue dos corpos purulentos,
Desaparecendo nas valetas cegas da cidade.
(…) E as mulheres saem de casa caminhando sob a chuva,
Desejando ser putas e morrer numa página de um livro de fadas.
Na assombração dos limites do desejo.
Nas casas em construção, o sofrimento foi a primeira pedra.

Cativa
6/10/2017

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publicado às 16:50

peregrinação

por vítor, em 16.08.18

Sim, depois das pernas cansadas e do rosto desfeito pelas inclementes investidas do vento, das chagas rasgando os pés, cheguei ao lugar. Queimei os sapatos no aquilino promontório e voltei para onde sempre pertenci.

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publicado às 16:48

automóveis e gatos

por vítor, em 16.08.18

Quando abri a janela do quarto, depois de uma noite de inquietação convulsa, entrou uma brisa fresca e na pimenteira bastarda um casal de rolas debicava-se amorosamente. Depois da higiene pós sono e do pequeno almoço lento, saí para o quintal e vi que a minha gata rasgava o corpo indefeso de uma das amantes da moldura da janela. A outra, aparvalhada, seguia a tragédia no alto seguro da pimenteira. Um amigo meu está sempre a dizer que os gatos são uns assassinos e que constituem um perigo para muitas espécies em via de extinção: matam milhares de pássaros, osgas, lagartixas, cobras, ratos, perdizes, coelhos. Até os nossos queridos camaleões. Os gatos deveriam, ainda segundo ele, era estar em casa, castrados e enclausurados. Discordo sempre veementemente e daqui não saímos. Eu que é a vida, que gatos esterilizados e presos é que é um atentado à natureza e bla e bla e mais bla e encurralados na discussão. Hoje, arrasei-o: sabendo da sua paixão por veículos mototizados, atirei-lhe à queima roupa "e então os automóveis?"

 

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publicado às 16:46


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