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Deu-me uma branca e esqueci o meu nome. A mania
que imaginara enquanto enfiava a roupagem
do lobo mau, fez-me detestar as cócegas que os filmes
de polícias e ladrões me presentearam.
Na ginástica, ninguém saltava mais alto que eu, dizia catapultando
o corpo por cima dos automóveis engarrafados.
Deu-se-me uma branca e o queijo que roía, distraído, não
me sabia a nada.
Olá!, atirou-me o anúncio da pepsodent. Gosto
de gajas e a mulher do sorriso branco desafia-me
os instintos que adquiri na selva. Foram baratos
e, por isso, voavam sobre rios e precipícios. Às vezes
era preciso ser campeão de espeleologia para aceitar os convites
da vizinha antes do anoitecer. Mal transpunha a porta
via a loira pepsodent e esquecia-me da vizinha boazona
que me outorgara o convite. Começada a brincadeira
com a outorgante; que não tinha olhos azuis, nem cabelos loiros,
nem sorriso uniformizado; ficávamos tão felizes que os corpos nus
pareciam saídos de um documentário sobre lontras no pacífico sul,
ou de uma telenovela mexicana em tempos de crise.
Grandes tempos aqueles! O que dava pena era ver o marido
e o papagaio a brincar às gaiolinhas enquanto esperavam o jantar.
Queres ir ao circo?, perguntou-me ainda o papagaio antes
da minha saída pela escada de incêndios.
Não, obrigado, e… boa noite senhor doutor.
Pareceu-me entristado, o cumprimentado anfitrião e vizinho
dedicado: o trabalho de doutor devia ser um bocado chato,
concluí, puxando o fecho eclair até acima.
A vizinha atarefada controlava os tachos quentes
na cozinha nublada.
Deu-me uma branca e nem sequer a minha identidade reconheço.
Aliás o que vira na televisão era uma mancha branca
Por entre os lábios da confusão.
MG 19/5/2011
Fernando Esteves Pinto, depois do lançamento do romance "Brutal", em grande com um novo livro de poesia. A capa é linda, espero ansiosamente tê-lo nas mãos. O meu amigo e sócio é já o escritor do ano de 2011 em Portugal. E o ano ainda só vai a meio...
Texto escrito semi automaticamente sobre a poesia de FEP:
Fernando Esteves Pinto, uma arqueologia do sonho
A poesia de Fernando Esteves Pinto inquieta. Inquieta porque desce (sobe?) até aos socalcos mais profundos do inconsciente, revolvendo os sedimentos há muito estabilizados. A poeira densa que se levanta, mete medo. Os destroços fundacionais emergem quando a poeira turva assenta nas depressões matriciais. O espectáculo desocultado não é agradável a quem o presencia. Especialmente para o ente escalavrado pelas palavras que metralham a carne e violam a mente. A inquietude não constitui um fim em si. O desmoronar dos blocos constituintes do velho edifício, montados de fora para dentro, representam um desafio para o leitor que, assim, pode, a partir da sua nudez revelada, edificar uma nova construção mais ajustada à alma e ao corpo. O Fernando é um arqueólogo da alma, um cavador de pessoas, mas também um arquitecto da carne.
Quem lê e acompanha o evoluir da sua obra poética apaixona-se por esta dialéctica da desconstrução/construção, por estas vertentes aparentemente contraditórias: medo e desejo, caos e cosmos. Um perigo contínuo e magnético que convida o leitor a uma dança de máscaras onde cada um dos dançarinos se oculta por detrás da máscara de outro, não reconhecendo os limites que separam as identidades difusas que evoluem no soalho da vida.
“Para que uma coisa permaneça, aplica-se com ferro em brasa. Só fica na memória o que não pára de doer”, diz Nietzshe, na sua obra Para a Genealogia da Moral. Fernando Esteves Pinto escreve penetrando e desvendando a genealogia da libido enquanto contenda natureza/cultura. A natureza pouco aparece na obra do autor: antes constitui uma meta linguagem que se entranha nas vísceras entreabrindo, apenas, portas – às vezes janelas – por onde se escapam instintos que inviabilizam o conforto das certezas. É dessa substância que encontramos numa passagem fabulosa no seu livro Ensaio Entre Portas: “”A porta da rua tem um sentido particular, ofuscante. É/ uma tampa indispensável que cai sobre as nossas costas/quando saímos ou entramos em casa. É um sinal de/interdição”. Tudo o que pretendi dizer até aqui, em quatro versos.
A arqueologia internalista (passe a redundância) transforma a vida em sonho, o que não significa que é menos real por isso. Fernando Esteves Pinto arremessa o leitor para um espaço inóspito, numinoso e ígneo, entre as sombras e a luz. Mas quem o lê terá à sua disposição uma escada para sair da caverna. Sair ou restar, será sempre uma escolha do leitor…
Conceição, 13 de Maio de 2011
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