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por detrás da porta, a sombra

por vítor, em 27.02.11

gere a desorientação responsável pelo ruído da alma vestida de palhaço incompleto, reduz o exemplo da hierofânica verdade dissoluta ... no lodo evidente, sonsura dominante nas cicatrizes do calor, da insânia sedimentada nos ritos do calendário social que alguém parodiou no equilibrio sem paixão dos convertidos, explicação corrosiva no pó que se eleva nos atalhos petrificados da memória

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publicado às 18:23

antologia do esquecimento

por vítor, em 18.02.11

UMA VIDA NORMAL

Toda a vida sonhei com uma vida normal. Diria mesmo que foi o único sonho que alguma vez ousei alimentar. Eu acordava de manhã e levava-te o pequeno-almoço à cama, ou acordavas tu e trazias-me o café sem açúcar e as tostas com manteiga que nunca tenho tempo de torrar. Normalmente saio de casa em jejum, a isso me obrigam os atrasos incorrigíveis. É assim com quem não se disciplina. Horas para me deitar não tenho, horas para acordar são-me impostas. Sempre sonhei com o oposto, uma vida normal. Poder fumar descansadamente o primeiro cigarro do dia. E folhear o jornal e passar-te os dedos pelo cabelo, olhar o teu rosto sorridente e não pensar sequer no que vestir porque o teu sorriso é o sol de que necessito para me manter quente no Inverno e confiante no Verão. Eu sempre sonhei com uma vida normal, uma casa pequena com quintal, um cão, um trabalho simples. Fins-de-semana sentados no alpendre a ler romances russos, uma cerveja ou duas para salgar o desejo e trabalhos de bricolage para enganar a incompetência. Desajeito-me com a vida, não distingo o estuque do salitre, um martelo de uma bigorna, um alambique de uma fornalha. Toda a vida sonhei com piqueniques ao domingo, a toalha axadrezada estendida sobre as ervas, um sumo de laranja natural, fruta fresca da época, uma sesta ao som do vento que amaina os pinheiros. Eu sempre quis nadar de costas, não sei onde fui buscar esta tendência para o prego. Ainda me safo a imitar os cães, pouco mais que isso. Quando era criança pensava que iria crescer como as plantas que crescem dentro das vidas normais, regadas por semanas de trabalho prazenteiro e fins-de-semana temperados por comédias românticas, caminhadas na serra, passeios junto ao mar. Eu queria coleccionar qualquer coisa que me ocupasse o espírito e distraísse dos desastres, calendários, porta-chaves, esferográficas, moedas, selos, borrachas, amostras de perfume ou sabonetes, pacotes de açúcar, chávenas de café. Queria uma colecção normal para dias normais numa vida normal. Tudo isso me escapou por entre os dedos como um polvo escapulindo-se do arpão. Vê no que deram os sonhos: acordamos ao som dos peidos um do outro, queixamo-nos do caril, das natas, do jantar da noite passada. Lavamos os dentes enquanto olhamos mais um cabelo branco, uma ruga, um ponto negro nascido da velhice anunciada. Fugimos de casa com o estômago vazio e as retinas coladas aos ponteiros do relógio, sempre mais ligeiros, astutos, ágeis do que a nossa incontrolável flacidez. O tempo antecipasse-nos, chegamos sempre atrasados ao tempo porque insistimos em adiar tanto a partida como a chegada. Para nós, o que importa é iludir a inevitabilidade dos horários, dos calendários, das planificações, dos mapas e das grelhas, não daquelas onde libertamos a carne da gordura, mas das outras, as terríveis grelhas onde assamos os nossos próprios ossos, onde vamos deixando a pele como quem desgasta uma borracha ou queima uma vela. E depois passam-se os dias, regressamos a casa estafados, sentamo-nos à mesa a fingir que ainda existimos, oferecemos ao estômago a alegria de uma alheira que nos justificará os peidos da manhã seguinte. Calamos as mágoas com dois ou três ou quatro copos de vinho e mais um cigarro em silêncio, ligamos a televisão num canal que nos distraia de nós próprios e adormecemos com os olhos postos no vazio. Logo nós, que sempre sonhámos com uma vida normal. Eu, pelo menos, sonhava. Julgo que tu também.
(gentilmente surripiado ao Henrique Fialho do blogue "antologia do esquecimento"

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publicado às 11:30

artalaia

por vítor, em 16.02.11

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publicado às 16:49

última dissolvência

por vítor, em 14.02.11

 

 

 

 

ela sorriu transportando a paisagem

que reforça o intervalo entre o fim e o

princípio num lago de nudez abreviada

sorriu e chamou a pertença consagrada

nos limites, parceria indisponível transcrita

no lugar, dúvida importada, preconceito inicial.

 

O escuro manso dissolveu a responsabilidade

em escaramuças militantes, entendimentos da viagem

desvalorizada, última dissolvência impaciente

perdendo o consenso na distância coreográfica.

 

o sorriso da mulher que percorre o olhar

ingrato da única vitória dos abstencionistas

curiosos, maioria significando a aposta

nas flores, diz-nos da crueza do obstáculo,

da dor na noite recuperada da berma do caminho,

legitimidade do pesadelo indocumentado,

metade da dor marginal, sorriso do poder

que se eleva nas faenas do sexo consumidor

dos corpos raivosos e sectários,

discurso ressentido e parcial.

 

A atenção do outro não reflete o estado

de embriaguez vazia que conduz

a relativização da evidência, transformação do novo

interpretando a inocente figura que emana

do sorriso absoluto.

 

gere a desorientação responsável pelo ruído

da alma vestida de palhaço incompleto,

reduz o exemplo da hierofânica verdade dissoluta

no lodo evidente, sonsura dominante nas cicatrizes

do calor, da insânia sedimentada nos ritos

do calendário social que alguém parodiou

no equilíbrio sem paixão dos convertidos, explicação

corrosiva no pó que se eleva nos atalhos

petrificados da memória.

 

ela sabe como podar as ideias

que se desprendem do oculto sabor a derrota,

mutilar o chão onde navegamos à vista

e contendemos com os ossos que se erguem do tempo.

 

ela é um implante na paralisia do medo,

na arte de inventar placebos, paixão

na imensidão do caos.

 

sorri e não colhe. As manadas assentam

os cascos na  viscosa película dos afectos.

 

MG 25/1/11

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publicado às 10:41

 

 

 

dirias que a sanidade mental é um pergaminho afixado na parede para ser lido por quem não sabe interpretar as palavras lavradas na pele antiga.

 

 

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publicado às 10:32

último tango

por vítor, em 03.02.11

 

 

 

 

 

Logo a seguir ao 25 de abril de 1974, tinha eu dezasseis anos, fui com uma amiga ver o Último Tango em Paris ao cinema a Faro. O filme fazia furor em Portugal sobretudo pelas cenas de sexo, coisa nunca vista por cá. A película era para maiores de dezoito e era um problema para eu entrar. A minha amiga já tinha dezoito anos mas eu tive que fixar o nome e outros dados do bilhete de identidade do seu namorado ( tempos libertários aqueles), e, nervosíssimo, ultrapassar o porteiro com o documento de identificação emprestado. Como era um rapaz desenvolvido para a idade e exibia uma barba respeitável, lá entrei com facilidade. Adorei o filme e sobretudo... o Marlon Brando. O pior foi responder à pergunta do meu pai, no outro dia, sobre a cena da manteiga.

 

Hoje morreu a Mary Schneider e eu já não tenho dezasseis anos.

 

 

 

 

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publicado às 23:11


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