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Dizes sempre alguma coisa antes de contemplarmos o sorriso
da chuva a lamber a vidraça. O cabelo envolve
as palavras frias das pessoas sem ritmo musical
continuando a viajar na lucidez das ausências nunca anunciadas.
Dizes o que não traz nome, chave postiça que viola a explicação
simples na revelação da leitura impune, quando
interiorizas o eterno guião da mudança.
A tua responsabilidade no crescer do esquecimento
assume-se como rejeição do tempo intransponível. Somos
aquilo que o olhar procura, aquilo que desaparece na mecânica
do desejo acomodado.
Rejeitas o que dizes antes de o dizer, exiges a rara leitura
da distância, o sopro do discurso que éramos na
ocasional confusão dos corpos enlutados.
Nenhuma agressividade se liberta do que dizes
na acomodação do desejo, na rigidez dos significados
das palavras murmuradas que nos explicam a legitimidade
da insensível brusquidão da loucura.
Podemos dizer, sem exprimir a acomodação dos sentidos,
a irrecusável notícia do mensageiro apocalíptico que nos
surpreende enquanto paradoxo reunido à mesa
dos esqueletos brumosos da comunidade.
O sorriso da chuva é uma ameaça à necessidade
exasperante dos sinais exteriores de melancolia.
Dizes e não ouves.
(Monte Gordo – 23/11/10)
Um homem que era simples. Um simples homem, diziam uns. Um homem simples, diziam outros, não sabendo, nem uns nem outros, o que diziam. Hoje que todos os homens poderosos vieram até à minha terra atravessando as fronteiras fechadas, um homem, que era simples, foi-se deitar mais cedo. Os sonhos vieram até ele e confortaram-no. Os homens simples (ou os simples homens?) são fáceis de confortar. Não sabias? Se não, deve ser porque és um dos poderosos que pisa a nossa terra... oxalá não comam as fanecas todas.
«degraus, patamar & queda». 50x50 cm, técnica mista sobre tela. Set 2010.
Título, desenho e ideia gentilmente surripiados (sem a devida autorização, claro) ao meu amigo (e também fabuloso - nos dois sentidos - escritor e poeta) José Carlos Barros.
Diria, ainda, não acrescentando nada à supra furtada obra, que desde que o homem passou a poder fabricar lâminas que duram toda a sua vida, por mais longa que venha a ser e por mais "rasages" que leve a cabo, o capitalismo ficou condenado ao afundanço cruel e sem agravo. UFA!!!
O Outono não é, nestes campos do Sul, o estertor a caminho do Inverno. A morte instalou-se com o esplendor do restolho, no final do Verão. O Outono é quando a erva desponta desse restolho entumecido da humidade das noites longas de Novembro. Aqui na quinta, a aproximação do Inverno é tempo da vida. Tudo renasce para tudo morrer. A Primavera, bem a Primavera é a redundância da vida. É, diríamos, a adolescência do ciclo
anual. O Verão é o fim. E cada fim é apenas o começo do princípio (msier De La palisse não diria melhor).
Como vos dizia o aproximar do Inverno traz trabalho acrescido à quinta. Trazer lenha para junto do monte para a cortar à machadada ou com a moto-serra e recriar a horta são os meus trabalhos favoritos. Hoje carreguei a minha pick-up de lenha de alfarrobeira e oliveira (lenha seca e pernadas caídas que resultam da auto-poda das alfarrobeiras - chega a cair mais de metade da copa e com um barulho assustador) e despejei-a junto ao armazém. Armei-me de machado e cortei lenha para uma semana de lareira.Ah, já me esquecia, hoje é o dia da primeira noite, da primeira noite de fogo dentro de casa. Esta noite a Betty não sairá de casa. Enroscada na sua cama junto à lareira, sonhará com ratos toda a noite. Já agora, o outro doméstico da casa, este o verdadeiramente doméstico que a atrás citada nada de doméstica tem, D. Matrix ladrava, ladrava no quintal enquanto eu machadava a madeira cansada. Nestas ocasiões não pode andar por perto ou ainda o racho. Aliás, nem eu devia andar por perto... e ainda por cima tem estado em prisão domiciliária durante o dia por comer galinhas à vizinhança.
Mas o que me deu mais gozo foi o recriar da horta. Já tinha lavrado a terra prometida com o trator. Hoje foi só misturar na terra o composto do diligente compostor, lançar a semente à terra e, com um ancinho centenário, misturar e enterrar. Depois da rega abundante dos quatro canteiros com, por ordem alfabética, alfaces, coentros, rabanetes e salsa, armei um banco corrido com uma travessa (solipa) da linha do comboio junto à horta e, enquanto via o sol mergulha ao fundo da quinta, fumei um cigarrito sentado na bancada lateral. Sim, que uma horta, ao contrário do que os parolos da cidade pensam(pronto, não se zanguem, os parolos de todo o lado) é um espetáculo permanente e em constante mutação.
Agora que o passado já não conta, vou incendiar a lucidez e permitir-me abraçar os dias sem objetivo. A pequenez de tudo o que circula na contramão ser-me-á o alimento que atenua a faminta vontade. Os olhos dirão o que o silêncio não quiser. Navegaremos, então, na tépida nave dos afectos.
60x35
colecção de Laurentino Pinto Madeir
À carne inimputável acrescento o pavor
que a poeira confunde nas respostas
assexuadas da dor.
Não respondo pela loucura que se liberta
do desejo intruso rastejando na pele inflamada e cruel
nas imagens que projeto no vento irascível
deriva que alberga e peia as máscaras reclusas.
O ruído ondula na praia, no mar que se recusa a controlar
a memória convulsa, reverberação carnal que inverte o desejo
e esmaga o conforto do regresso aos ditames
primordiais, inertes angustiados gemendo nos lábios cerrados
rompendo a humidade do sexo, garantindo a imputabilidade
do homem que acordou do sonho antigo
provocação da vida intermitente.
Partilho o projeto de segredo onde a nudez
da narrativa resgata a aura paralela do vazio
eterno da criação
frase de ontem ao encontro da noite, procura da pedra
emersa na pradaria apocalíptica
futuro próximo da visão armadilhada.
A carnificina a que me proponho assistir
arrastará as almas até ao êxodo final, descobertas, restarão
pasto dos abutres do espírito ensanguentado.
(Monte Gordo () 2/11/2010)
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