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Durante anos, a minha mãe foi a senhora do meu cabelo. Na minha primeira década de vida, usei risca ao lado esquerdo. Risca euclidiana: direita e vincada num cabelo a dar para o revolto.
Como tenho um irmão mais velho cinco anos, fui ocupando, com facilidade, o caminho que ele foi desbravando. Foi assim que comecei a usar cabelos compridos cedo e a mandar a "risca-da-minha-mãe" à fava, no início da minha segunda década. A tal de risca continuava à esquerda se bem que se tenha tornado sinuosa e imprecisa. Um dia, nos princípios dos anos 70, acompanhei o grupo de teatro da aldeia a uma actuação a Estoi. O meu irmão era uma das figuras principais do grupo onde, mais tarde, eu próprio passearia a minha carcaça pelas tábuas (e os cimentos) dos palcos algarvios (um dia destes irei abordar com mais tempo a actividade teatral da aldeia que ainda hoje vai de vento em popa). Mas íamos chegando à pitoresca e linda povoação de Estoi, nas fraldas das serranias algarvias, nos barrocais do concelho de Faro. Enquanto montávamos o cenário na sala de espetáculos da Casa do Povo local, deparei-me com uma visão que iria mudar radicalmente a minha vida. Um rapazinho da minha idade, que ajudava no transporte dos adereços, ostentava um cabelo comprido, liso com... risca ao meio. Naquele mesmo dia, passei a usar risca ao meio sempre que tinha os cabelos compridos, o que era quase sempre. Para grande desgosto da minha mãe (esta decisão marcou finalmente o corte do cordão umbilical psicológico que nos unia) e espanto dos meus vizinhos, que eram todos, aldeãos (alguns jovens adultos ainda assobiavam, com quem assobia a raparigas, à minha passagem). Fui o primeiro homem a usar risca ao meio na aldeia. Assim foi até ao fresquíssimo ano de 2009. Cabelos revoltos e risca ao meio foram a minha imagem de marca até ao final do ano passado.
Nos últimos anos os cabelos começaram a rarear de uma forma estranha: só do lado esquerdo da calote cabeluda. A coisa não é ainda muito grave e disfarçava-se bem com uns cabelos mais cresciditos mas, descuidado como sou, lá apareciam com regularidade as tais peladas laterais para grande alegria dos meus filhotes e outros amigos da onça. Nunca tive problemas com mais ou menos cabelo, nem com vir a ser ou não careca mas, só para os chatear, descobri a maneira de ocultar tais clareiras: passei a usar risca à direita e assim estender o cabelo para o hemisfério esquerdo. Bom, até me sinto outro. Uma espécie de Brian Ferry da zona. E até os olhares das mulheres são outros... Só é pena que os cá de casa não tenham valorizado esta fracturante mudança e continuem a risota do costume. Agora um pouco mais convulsiva. São uns insensíveis, é o que são. De estética e beleza parece que não dão uma para a caixa.
Esta foi a primeira música que aprendi a tocar na viola. Foi meu mestre o meu amigo "ratinho" Luís (saravá Braga). Era o celebérrimo ano de 1974 e estávamos em Portalegre a meio de uma visita de finalistas (o antigo 5º ano).
Não sei porquê, hoje ao encontrá-la num blogue, veio-me à cabeça a poesia de Miguel Godinho e das suas divagações metafísicas por entre os tortuosos caminhos da vida e da vidinha.
Ao anoitecer, na mansidão da memória,
é mais fácil transpor a fronteira.
No revolver dos sonhos,
a claridade das ilusões, e a certeza:
tudo se torna evidente ao cair do dia,
quando nos perdemos no tempo
e temos dezoito, outra vez
e temos cinquenta, ou cem,
mas temos dezoito, outra vez.
De que importa a solidão de agora
quando a noite assim traz
de volta a loucura,
quando nos apercebemos que não há idades
para nos sentirmos vivos
Miguel Godinho
Escarificas o restolho cansado
que me cobre a pele
revolves a carne superficial
onde a dor se aloja confundindo
os impulsos impenetráveis
da morte
Os sulcos que rasgas
na superfície instável (ainda
vegetação primitiva) impedem
o regresso da conversa concupiscência
Escarificas o restolho
preparando o corpo para o ódio
discreto da amplexa plenitude
deriva obtusa do sexo
inquieto.
Diante dela perdi a cabeça
foi terrível
o chapéu foi-se com ela
(qual delas?)
Deus é infinitamente mais perfeito do que a Al-Qaeda. Cem mil mortos e dezenas de milhares de feridos em menos de um minuto. Ainda por cima num dos mais pobres dos pobres: o Haiti.
Lembrava-se de tudo como se presenciasse a cena: à direita um actor de cinema com os olhos em bico do leite de coco com aguardente de cana. O crepitar da fogueira enchia a sala de recordações tristes. Embevecida no fogo estava ela. Porque fora ele meter-se naquele covil de lobos sem unhas?
Bebeu mais um copo. A cabeça recusava-se a pensar nas responsabilidades do dia a dia. Bebeu outro, de um trago só. Maldita cocaína, ouviu a consciência com voz grave de pai dos anos trinta.
Lendo uma revista pornográfica, desta vez à esquerda, estava um cavalheiro distinto mas sem gravata. Ela sorria avermelhadamente com a calma de quem jogava. Roleta russa.
Agora era o malvado joelho que teimava em não funcionar. Nem a perna conseguia cruzar. Que pontapé, essa gente devia era ser jogadora de futebol.
Na poltrona do meio dormitava um velho jornalista corroído por notícias de todo o mundo. Tinha sido, até, correspondente na Polinésia.
Ela chegara-se mais ao fogo como se precisasse de mais calor. Era a sua, dele, hora. Pé ante pé, chegou-se à lareira e, com a tenaz, retirou uma brasa do braseiro. Acendeu o cigarro à americana. Soprou o fumo, primeiro pelas narinas e depois através dos dentes.
Sentiu-se alarmado com as palavras que deixara escapar. O jornalista farejou notícia. O cavalheiro distinto sem gravata ousou mesmo esboçar uma retirada discreta, sem o conseguir. Pela porta dos fundos apareceu quem se esperava: o polícia secreto do governo sombra.
Sem conseguir reagir ao desencadear dos acontecimentos, e com dores acentuadas nas costelas, deixou-se prender por ele e... por ela.
«É preciso que alguma coisa mude para que tudo fique na mesma.»
- Frase saída da boca do príncipe de Salina, no livro Il Gattopardo, de Giuseppe Tomasi di Lampedusa (1896-1957), príncipe por nascimento e romancista por excelência das guerras da unificação italiana.
Este foi um dos homens mais importantes da minha adolescência. Morreu há 50 anos.
Primeiro ato neste início de ano diluviano.O caminho faz-se caminhando e em janeiro os pés far-se-ão desenhar nas lamas fecundas do restolho agonizante. A vida irrompe onde a morte alimentou os campos de ausência e asperidade. Os dias de março virão e batizaremos a terra de luz e cor. Siga a ação que comando eu. A continuidade é uma mal dita palavra nas noites que introduzem a perenidade das coisas. Das coisas que precedem o silêncio.
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