Saltar para: Posts [1], Pesquisa e Arquivos [2]
S. Sebastião de Guido Reni
Apesar do clamor que tem varrido a nação, tenho-me mantido em silêncio.
Apesar do milagre da multiplicação dos golos, (ainda) não acredito em Jesus.
O ainda é apenas uma manifestação de fé. Acreditarei nO Grande, nO Glorioso até ao fim.
Acabou agora mesmo a campanha da alfarroba 2009. Para poder fazer a minha dança ritual de fim de campanha, deixei duas alfarrobeiras para apanhar hoje, dispensando os meus dois trabalhadores no Sábado. A dança é um procedimento ritual solitário e, por isso, teria de ser assim.
Reparem que falei de trabalhadores e não, como no último post em que referi a apanha, de um. Acontece que o trabalhador referido ( e aproveito para agradecer ao meu amigo Manuel Ramos a resposta certeira), o grande poeta e artista plástico Rui Dias Simão, arranjou um colega para melhor passar os dias de solidão sob as copas frondosas das míticas árvores. Uma noite, após um duro dia de trabalho, fomos, patrão efémero e trabalhador intermitente, levantar a exposição que ambos tínhamos montado na Associação Cónios, em Santa Luzia e que esteve aberta ao público no já longínquo Agosto. Eu na qualidade de comissário, o trabalhador na qualidade de artista convidado. Depois da difícil desmontagem e respectivo transporte para casa do artista, exaustos, fomos para... os copos. Nos diversos bares que percorremos pela noite fora encontrámos vários noctívagos, amigos e desconhecidos. Um deles, inglês, amigo do Rui e meu desconhecido, procurava emprego. O poeta, coração bondoso, contratou-o ali mesmo para a campanha da alfarroba. Eu assenti. As chuvas aproximam-se e dois e meio apanham mais depressa que um e meio. O meio, está claro, era eu. No dia seguinte, poeta e inglês dormiram até não poder mais, enquanto as alfarrobas esperavam. Eu, fresco que nem uma alface no frigorífico há um mês, lá me apresentei no trabalho, o de todos os dias "úteis", às oito e meia da madrugada.
Mas o que é certo é que a campanha lá chegou ao fim e as alfarrobitas já jazem ensacadas à espera que o sr. Madeira as venha buscar, hoje mesmo. Aliás escrevo estas palavras enquanto aguardo o camião que transportará as sacas. Combinámos às dez. Ao menos vou escrevendo alguma coisa. A seguir seguirei o camião até à Alfandanga para assistir à sua pesagem e receber o bem vindo cheque. Assistir à pesagem é imprescindível. Para além dos descontos no peso para as sacas e os pastos, o sr. Madeira é especialista em procedimentos ocultos durante o processo da pesagem, fazendo com que a balança penda sempre mais para um dos lados. É bem fácil perceber para qual...
Cá por mim, passava bem sem governo mais uns tempos...
Sou um leitor quase fanático de José Saramago, mas não concordo muitas vezes com o que o homem diz. Penso mesmo que A Paixão Segundo Jesus Cristo é um dos mais belos textos sobre religião (religioso?) alguma vez já escritos.
Eu que sou um cristão ateu gosto muito de ler a Bíblia. Tanto como gosto de ler os livros de Saramago. No entanto não posso ficar indiferente à vaga de fundo contra a liberdade de expressão que as suas palavras, livres e legítimas, fizeram varrer a nossa terrinha.
O sr.Mário David (nunca tinha ouvido falar em tal pessoa, defeito meu certamente) também tem direito à livre expressão e à palermice sem limites. No entanto, como político que é, sabe como pode condicionar a liberdade de expressão. Penso mesmo que esta atitude do deputado europeu é o maior atentado à liberdade de expressão em Portugal, nos últimos tempos.
Felizmente, como diz o nosso povo ( recitando o camarada Jerónimo), vozes de burro não chegam ao céu...
Da penumbra do corpo
solta-se um aroma rosáceo
que me envolve os dedos tontos
sussurrando ventos na pele arrepiada
Quem não entende as cicatrizes do tempo
passará a fronteira do desejo
resvalando nos socalcos palpitantes
da carne em sangue rumorejando
nas inconfidências do silêncio.
As palavras não produzem os efeitos
que projecto nas consciências obliteradas
jazendo em muros
sentadas na planície incompleta
as palavras só rastejam quando a noite
bordeja os caminhos repletos de obstáculos
insaciáveis
onde a chuva de Outono se esvai por entre o sexo
que nunca percorre os meandros
da podridão aconchegante.
Agora o nunca torna-se no sonho
utópico da viagem
acorrentando as pernas dos desconhecidos
que se amam
nas grades frias do paradoxo
animalesco dos genitais.
Não posso sentir a volúpia da tua intranquilidade
prostrada nos dias sem luz
na ausência que afunda o frágil
fluir da viciante entrega
ao outro.
Não posso dizer o que não existe no mundo
das palavras frouxas e malditas
sons sem espelho onde a vida se esconde e reflecte.
(Monte Gordo, 20/10/2009)
Uma pequena parte do imponente cemitério de âncoras do Barril
O Verão continua por estas paragens do Sul. 30 graus durante o dia. No outro dia fui ao Barril dar o último mergulho da temporada. Simplesmente do outro mundo. Longo passeio a pé atravessando o sapal, a miríade de canais da ria e o cordão dunar. Com a Serra Algarvia a correr a Norte, cinzenta e ondulada: com os sobressalentes Mama Gorda, Cerro da Cabeça e Cerro de S. Miguel a iluminarem o mar. Marcas de terra de pescadores e outros navegadores, ao longo dos tempos. Os aglomerados populacionais brancos de Cabanas, Conceição, Vale Caranguejo, Tavira e Santa Luzia a espreitar a Ria. Quem não se sentir com forças para os 3 kms (ida e volta) da viagem a pé, há sempre o comboinho que faz o trajecto pachorrentamente.
Junto à praia as magníficas construções da antiga Armação do Barril (pesca do atum), agora transformadas em apoio turístico, proporcionam um bom descanso para a jornada de volta.
Na praia, quase deserta, um longo banho nas águas quentes do Atlântico, uma boa companhia, um dormitar sobre as areias finas, enfim... quase o dito paraíso. Mesmo para quem não acredita.
Quando era adolescente, passava o Verão na praia: manhãs, tardes e...noites. Noites longas à luz da fogueira, guitarras espalhadas pela areia e as francesinhas do Club Mediterrané acariciando o luar.Tornava-me castanho escuro, os cabelos (longos) ruivos e o corpo salgado de meses. Agora, que cheguei à meia-idade (?), raramente vou à praia. Nada me faz passar horas a escaldar ao sol. Só os longos passeios, os mergulhos no mar e os amigos me conseguem levar algumas vezes até ao areais da Ria Formosa. Chego a ir mais vezes de Inverno do que de Verão. As multidões que se apinham à beira-mar deprimem-me e não gosto muito de voltar aos lugares onde fui feliz. Ao Verão de outrora.
O Verão continua sem sobressaltos e eu não estou inquieto como de costume, quando isso se verifica. Estou em plena campanha da alfarroba e não quero que chova. Se chove não se pode andar na labuta e as ervas dificultam bastante a apanha do chão, Este ano atrasei-me bastante na apanha e tive até de contratar um trabalhador que tem feito a maior parte do trabalho. Afazeres múltiplos e um filhote que foi este ano para a universidade em Lisboa têm-me impedido de participar em pleno na campanha tradicional de fim de Verão. O trabalhador que contratei também não tem ajudado na velocidade de cruzeiro da apanha: vem um dia, falta dois; vem dois dias seguidos, falta o resto da semana; pago-lhe o salário, falta uma semana. O trabalhador é uma figura grada da literatura portuguesa, o que muito honra a Quinta, e só isso impediu a sua dispensa por negligência no trabalho. O Verão tem estado do seu lado e isso é bom para os dois: patrão e trabalhador. Quanto ao escritor, deixo para um próximo post a sua identidade. Para quem conhece a sua obra, aqui deixo um dos seus poemas.
Que nuvem se desfez sobre aminha cabeça
arrancando o verde do verde
apagando o azul do mar do mar azul
abatendo meus barcos na inavegável babugem?
Quem cobriu de fuligem o sol branco dos malmequeres
quem construiu casas vazias por cima dos caracóis
quem mandou à merda os pássaros perdoáveis?
Que nuvem era essa
com figura de humano
a tirar macacos do nariz?
Há noites assim...
a cabeça não se deita deitada...
um imorredoiro assobio percorre,
percorre...
Penetro os assuntos das mobílias interiores
apanho uma lua, quase apanho uma lua
Há noites assim:
companheira companheira
apenas a irresistível cadeira...
Quem adivinha o nome do trabalhador intermitente?
O plano foi cumprido. Agora, aqui, sentado num velho banco do cais descanso ao sol de Março. A tarde caminha, sem sobressaltos para os braços da noite. As águas mansas refluem para o mar.
O que tinha que ser feito, foi feito.
As lágrimas escaldam na face sem luz. Passam criaturas sem propósito aparente. Atravessam o meu olhar para desaparecerem para sempre. A sua imagem reflecte-se nas águas do rio, como navegadores sem barco. Para eles a tarde não se afunda na memória. É uma tarde como outra qualquer.
Para mim é um final de dia que os tempos vão suster sobre a minha vida. Nunca outra paisagem sucederá no incerto fluir das horas. Para lá da noite, o futuro está morto. Os dias passarão iguais aos dias que virão. A vontade de conhecer a manobra dos passos encontrará a arbitrariedade solta do tempo encalhada num fundo que prende a correnteza do devir. Os ventos anunciarão primaveras nas falas dos transeuntes e a minha solidão ecoará para sempre nesta tarde solarenga de Março.
Amava-a como uma criança que ama o seio que suga na manhã da existência.
Entrara no hospital sorrindo. Caminhava ao encontro da morte como cavalos que galopam na pradaria. Sentia afluência do destino a massajar-me as meninges inquietas. No longo corredor desfilavam as nossas vidas. Emergiam dos rostos deslavados os sonhos parasitas da realidade. No lajedo do velho convento, reflexos de uma criatura sem futuro.De um desconhecido ao encontro das trevas.
Quando a enfermaria 118 se aproximou, perfurando os pensamentos incaracterísticos da loucura, acordo da longínqua alegria de antanho. Desoculto, então, a irrealidade hiante.
A tua face ilumina-se na penumbra tranquila da tarde. No neon que tranquiliza a sucata que te envolve.
As águas desceram tanto que os caranguejos assomam das fendas rochosas. A tarde arrefeceu brutalmente e sinto calafrios na pele brutalizada. Não tarda e as estrelas iluminarão a noite.
Não me interessa mais percorrer os caminhos que me esperam. Os tempos que inundam a paisagem., arriscam cânticos de embalar. Rituais que outrora me arrastariam no rodopiar das calmarias. Nos equilíbrios redundantes da tempestade. Agora resisto, sem peso, às carícias do devir e bloqueio, inerte, nas angustiadas perplexidades da sombra. Aspiro a noite e sinto que ontem foi um dia diverso de muitos outros dias. Amanhã não serei ninguém: a tua libertação soltou-me do tempo. Levito acorrentado à solidão que me consome.
Sento-me. Observo todo o universo do teu rosto. A tua tranquilidade é uma mentira. A complexa integridade dos teus passos soltou-se de ti. Por isso a morte antecipou-se à morte e, ironicamente, iluminou-te o semblante sobressaltado com que atravessaste os territórios movediços de outrora. O sofrimento esvaiu-se na dor. A dor metamorfoseou-se em serenidade. A minha missão é unir-te ao além. Cingir o passado e o futuro com a diversidade do que éramos quando podíamos caminhar de mãos dadas na irredutível personagem que construímos.
Com a impunidade de um sábio, retirei os tubos que te mantinham palpitante. A doença cedeu perante a morte. A panóplia tecnológica horizontalizou e instalou-se na cidade um murmúrio indizível.
A maré baixara consideravelmente e na lama de breu as bocas de cavalete matraqueavam ritos de amor. Paradas nupciais inconsequentes.
Portimão/Monte Gordo, 13/17/03/09
(este texto é para o meu amigo Mário que soube renascer do caos)
Faltava-lhe um dia de azar para chegar a casa e começou mesmo a ver-lhe já a chaminé sorridente. Na pressa de soltar os pés, tropeçou num ouriço cacheiro vagabundo. E como se a antipatia não morasse ali, encontrou um tipo de chapéu alto, com sapatos bonitos engraxados há cinco séculos.
A subscrição é anónima e gera, no máximo, um e-mail por dia.