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Irmanados pela complementaridade das vidas, cingidos pelos pulsos, avançámos sem pressas ao encontro do antro húmido e podre de uma esquadra qualquer numa cidade qualquer.
Um cidadão atravessou a chuva quente, exibindo uma compaixão infinita que me revoltou os intestinos. Talvez fosse um poeta.
Nas ruas, estreitas e sinuosas, espreitavam janelas e portas descoloridas. Um transístor atirou para a atmosfera balidos de político ferido, enquanto se ouviam aplausos tímidos num terceiro andar mal identificado.
O metal rompia-me a pele insensível, a memória fazia-me cócegas, porém a imortalidade seguia-nos pelos telhados.
Chegados ao lugar onde até os anjos sentem respeito pelas fardas, senti-o triste. Triste pela qualidade da presa.
Fora, ponha-o fora, ouvi o sub-chefe uivar, fora por amor de Deus... mas já que cá está, diga-lhe qualquer coisa ao ouvido.
O Glorioso, O Grande, continua pequeno. 3+3 golos encaixados em dois jogos consecutivos, com os descoloridos Nápoles e Paços de Ferreira, não auguram nada de bom para o futuro próximo. No entanto quero realçar o Neo - Glorioso, Carlos Martins, de quem eu desconfiava um pouco; que fez ontem um jogo fantástico na sofrida vitória no terreiro do Paços (gostaram da analogia?), por 3 a 4. Atacou, defendeu, passou, rematou e sempre numa entrega total, aguentando estoicamente a pancadaria que lhe foi sendo distribuída durante os 95 min. Mil vezes pareceu sucumbir, e necessitar substituição, mil vezes renasceu para servir e sofrer.
Com o seu ar esgaseado-biblíco, foi o esteio de uma equipa ainda (espera-se) à procura da tramontana.
Tomava um café enquanto lia o jornal, na rua principal de Monte Gordo. Descontraía, num intervalo do trabalho.
A notícia chegou galopante, bruta e esmagadora. O Gavinhos morreu. O quê?!Como?! Não entendo!!!
O Gavinhos morreu. Repetia o mensageiro do outro lado do telemóvel. Não pode ser verdade, os amigos não morrem!
O Eugénio era um homem de aspecto rude, barba eterna e sorriso doce. Criado nas encostas da Serra da Estrela, em Gouveia, escolhera Tavira para viver há cerca de 30 anos. Por detrás desta silhueta grande e escangalhada, assomava um homem bom, dócil, solidário e gentil. Um homem apaixonado pela vida que acreditava nos outros e que, desinteressadamente, tudo fazia para poder ajudar os que a vida deserdara. Um dos homens mais inteligentes que já conheci.
A última vez que tive o privilégio de estar com ele (no café Veneza), transbordava de felicidade: estava com os filhos (vindos de Lisboa para um curto período de férias) e falou-me, com os olhos brilhantes, na neta bebé e na reforma que iria chegar no ano que aí vinha (este ano, portanto). Milhares de projectos já fervilhavam naquela cabeça inquieta. Inquieta por agarrar o futuro.
Há alguns anos tinha, finalmente, vencido a besta do álcool que o atormentou parte da vida adulta. Mas a besta sempre espreita e desta vez traiçoeiramente sem permitir a intervenção da vontade. Um tumor no cérebro conduziu-o à morte em alguns meses.
"No passa nada", Eugénio. Só deixaremos de nos encontrar no café...
Olhaste sempre para o lado
não ousando ver a luminosidade
que se desprende do caminho,
inventando a gestão do futuro,
corrompendo a perplexa realidade.
A memória difusa naufraga
nas traseiras da tua casa,
na árvore enraizada do quintal.
Vês as galinhas-da-cor-do-gato
alimentando-se de vermes da estrumeira?
Utiliza-as para viajares no tempo
feliz das paisagens encantadas,
no princípio fracturante e inatingível,
mergulhando as mãos na merda-fresca-da-cor-do-gato.
Para compreenderes a utilidade da podridão
reboca o teu olhar até à inscrição escravizante
dos tempos primordiais
que espreitam por debaixo do entulho
onde o medo cresceu.
Não mudes,
o passado tem o tamanho do futuro
e a vida é um efémero lampejo de nudez
na anárquica deriva da esfera celeste,
na ausência dolorosa de lucidez.
A tua visão lateral é um sopro
nas velas da caotização do cosmos.
PS: Qual é a cor do gato?
VRSA, 10/9/08
A ópera ecoa no pomar saindo da antena 2, do rádio da Ford Ranger. Continuo a minha saga de apanhador de alfarrobas. Agora quase só ao fim de semana que o trabalho principal ( o que me dá o pãozinho) já recomeçou. Nesta fase da apanha estou na zona mais sensível. Num pomar que eu próprio plantei: charruei a terra, marquei compassos e linhas, abri covas, plantei as arvorezinhas, reguei nos 3 primeiros verões, podei regularmente, e amei-as muito. Só não as enxertei porque o engenho e a arte não o permitiram. Uma delas é muito especial. Foi o meu pai que a semeou num vaso e tratou nos primeiros anos. Quando ele morreu, transplantei-a. Foi a primeira alfarrobeira da primeira fila deste meu projecto. Um vizinho, a quem emprestava o tractor, e como compensação me lavrava o pomar, ainda lhe meteu um disco da grade pelo tronco adentro. Sobreviveu e é hoje a mais distinta e formosa alfarrobeira do pomar. O amor faz milagres...
De vez em quando, vou à pick-up fumar um cigarro deitado na caixa da viatura, enquanto as vozes percorrem as alamedas da memória. Neste trabalho duro e solitário (ainda convidei o pessoal lá de casa para me acompanharem, mas outros valores mais altos se alevantaram) a ópera opera ( desculpem-me o trocadilho foleiro) uma magia fabulosa e anestesiante.
Quando nos idos anos 70 (depois do "25")o Domingos nos encantava com a sua guitarra no comboio para Faro, onde frequentávamos o Liceu (no Sotavento só havia 6º e 7º ano - antigos- em Faro, pelo que o comboio de Vila Real a Faro era um autêntico regabofe de adolescentes cabeludos), sempre pensámos que aquele mosse haveria de revolucionar o rock no Algarve. Assim veio a acontecer e, mesmo com vicissitudes várias , entre as quais a marginalidade a que são votadas as almas criadoras que não pululem pelas sagradas terras da capital e a desarmante humildade deste músico extraordinário, o Domingos e os seus Íris são hoje a face visível de uma nova música a que, por falta de outro termo, chamaremos rock algarvio ( ou, como outros lhe chamam, rock da ria, tendo em conta a Ria Formosa onde babujam músicos e notas). Para além de músico de eleição, forjado nas cordas mágicas de outro monstro da música algarvia: Telmo Marroquino (de quem um dia falaremos com tempo),o Domingos entrega-se de corpo e alma à sua escola de música na Fuseta, viveiro que perpetua a herança de músicos fusetenses como Zeca Repolho, Badalo e outros.
Lembrei-me desta música a propósito da volta ao trabalho. Mais valia atirar-me ao mar e dizer que me emperrarem...
Nos tempos da apanha da alfarroba pareço mergulhar na adolescência. Só me apetece entrar pelas noites adentro como gato à procura de sonhos já sonhados...
PS: Não tenho andado com disposição para grandes escritos. No entanto estou pouco preocupado. Como diria a grande filósofa dos nossos dias, Lili Caneças, não escrever é só o contrário de escrever.
PS1:O meu amigo Pedro Alves vai compensando esta ausência de palavras novas com algumas referências a palavras antigas e projectos novos deste vosso criado. Recomendo-vos vivamente a passagem pelo canal sonora, o belíssimo blog do amigo supra citado.
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