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Uma mulher entrou de mansinho arrastando as solas dos sapatos na tijoleira vermelha. Apertou a mão a uma salamandra semi-nua, que vagueava ao acaso pelas redondezas, e resolveu pedir um bagaço.
O empregado, senhor de um porte arredondado, serviu com a gentileza do costume.
Deu um trago sem pestanejar e sentou-se na arquibancada do fundo retirando um chupa-chupa da malinha ligeira. Chupa aqui... bebe ali...chupa aqui... bebe ali... e assim vai o relógio do bar consumindo o inexorável fluir do tempo.
Entram clientes, sentam-se, bebem e pagam quase sem falar, enquanto o relógio e o empregado vão servindo sem pressas.
Duas rebimba-corações bebem em silêncio na esplanada. O Sol mergulha no mar e as gaivotas erguem-se nas sombras. Ao longe, um saxofone geme milagrosamente entre a babuja da preia-mar.
A mulher levantou-se e dirigiu-se ao balcão ostensivamente envernizado de espuma.
- A minha conta, pediu com gestos meticulosamente embaraçados.
O empregado, que presenciara a lenta progressão da elegante senhora no salão, levantou-se cordialmente, do banco atrás do balcão, deixando o jornal, que lia sem interesse, pousar nas imperiais por tirar.
Uma centopeia, sem pernas, gritou na noite. A brisa nocturna, sem devaneios, invadira os lugares obsoletos, mordiscando os pensamentos dos lampiões tímidos da rua.
No instante em que a mulher tirou o montante, exigido pelo bagaço; da malinha, entrou no bar um cavalheiro sem olhar. A noite pareceu mergulhar no vasto oceano, enquanto o saxofone se extinguia entre os barcos sem cais.
Sem retirar o sobretudo, o homem sem olhar, voltou à rua e atirou-se na noite desaparecendo na encruzilhada das trevas.
A mulher, depois de receber o troco, penetrou no ar frio da maresia deixando um rasto de luz no alcatrão ainda quente.
O empregado, retomou a leitura do seu velho jornal: ... a solidão é o império dos sentidos.
Perante o espanto dos dragões nas terras do sol nascente, O Glorioso, O Grande, O Maior ilumina (como um "lampião" que se transforma no Farol de Alexandria) os céus de Oriente a Ocidente: Nelson Évora, medalha de ouro, no triplo salto; Vanessa Fernandes, medalha de prata, no triatlo e Angel Di Maria, ouro ou prata, no futebol. Maior que o país, O Glorioso consegue mais medalhas do que o próprio país de que é a alma.
Anselm Kiefer
Para compreender, destruí-me. Compreender é esquecer de amar. Nada conheço mais ao mesmo tempo falso e significativo que aquele dito de Leonardo da Vinci de que se não pode amar ou odiar uma coisa senão depois de compreendê-la.
A solidão desola-me; a companhia oprime-me. A presença de outra pessoa descaminha-me os pensamentos; sonho a sua presença com uma distracção especial, que toda a minha atenção analítica não consegue definir.
Bernardo Soares - Livro do Desassossego
Um ano, um mês e um dia depois de ter sido atribuído o primeiro galardão Cativa a Jorge Palma, cabe-me o prazer de anunciar o prémio de 2008 que irá para o Ricardo Araújo Pereira. Prazer porque sendo o "Prémio Cativa" para quem "contribua de forma marcante para o bem estar das pessoas", Ricardo e os seus Gatos Fedorentos constituíram uma lufada de ar fresco que varreu este "país-sempre-em-crise".
Com um humor inteligente e interveniente (vide a rábula ao prof. Marcelo, no caso do referendo sobre o aborto, e no cartaz resposta à provocação do cartaz da extrema direita quanto à emigração) emergiram rompendo o nacional/humorismo do trio fatal, bêbedo, paneleiro, cornudo, que pulveriza audiências. Com o seu humor provocante, deambulando nos limites dos limites, Ricardo Araújo Pereira montou o espelho onde o país pôde contemplar-se sem intermediários. É duro mas é nossa imagem.
A noite caiu cálida e serena. A casa do Rui encheu-se de gentes que não se rende. Gente vinda de outro mundo que caminha para outro mundo, enquanto agita este mundo. As noites destas gentes rasgam caminhos sinuosos que traçam riscos de solidão nas vidas incompletas. Nada pode prever os ziguezagues apocalípticos, as longas rectas sem destino. As palavras são cruéis e imprevisíveis, mutilam e abrem brechas nas crostas ideológicas da multidão. Vergastam a pele dos que sentimos mais próximos. As mudanças indispõem os organismos e são a força vital da sobrevivência. A mudança é a vida e predispõe a morte.
Na noite cálida que lavrou o tempo, o cálice ergueu-se pingando o vinho e tilintou nas esperanças da recusa de eternidade. A velhice saiu à rua e gritou aos ouvintes incrédulos a impossibilidade de regressar a casa. À casa dos teus avós. À genealógica euforia do devir. O mar entranhou-se, sem estranhezas, na confusão dos espíritos perplexos e aspergiu gritos de aflição na vizinhança amortalhada: a reacção foi desproporcionada à acção. Gente, que ninguém soube de onde vinha, envolveu-se na contenda do cálice e das palavras. Abafaram-se ideias de lucidez feroz. Louca. Os amigos enervam-se quando nascem profetas fora de prazo. Profetas que conhecem os meandros das consciências estagnadas. Das consciências marcadas pela violação dos direitos adquiridos no super mercado da sabedoria empacotada.
A casa do Rui flutua na noite. Enquanto os argonautas se digladiam na planície repleta de sombras, o anfitrião serve pérolas em cascabulhos roubados à lama escabrosa das almas inquietas.
As calmarias surgem na madrugada quando a conversa se concentra num chão pejado de alfarrobas.
(PS: Não ligar à conversa mole deste vosso criado. As noites-da-casa-do-rui são monumentos rituais celebrados em honra de Baco)
(PS1:Este texto, que saiu de rompante à velha maneira surrealista, é dedicado ao Adão que tudo filma, compõe e edita e que nunca aparece)
pedro jubilot
‘atira-te ao mar’
contos na ria formosa
-Marque! Ó Marque! Alevanta-te! -gritava o avô à porta da salinha dirigindo-se para a cozinha de chávena de tófina na mão.
-Conte na valia aquele cafézinhe chê de borras que tu me fazias-me com sopas conde ê cá endava da secada, desabafa António José.
Ao que obtém a resposta da mulher:
-Pô era...e sejava cafeteras, fegão...e o moçe cada vez tá pior. Côme chega cêde ainda se põe a ver vides da telervisão até de manhazinha.
Mestre Toino foi de novo à porta da sala um pouco mais chateado e gritou :
-Marque Entoine! Alevanta-te já desgraçade! Daqui a pouque tenhe o barque em seque.
Pegando no boné saiu falando entre dentes:
-O tê pai e a tu mãe é que tom bem lá da alemonha e ê que me charingue páqui contigue. Vô ma é endande pá do 7 estrelas. Se na apareces lá daqui a dé menutes bem podes ir trabalhar pá zobras que cá nan te dô ma denhere denhum pó reste das féras.
A avó liga a radio atlântico(ela gostava mais da antiga radio restauração do sr. Julinho, ali ao pé da rua de faro mas agora mudaram aquilo e só tocam músicas estrangeiras e estão sempre a falar das bichas de carros em lisboa) e locutor fala pelos cotovelos:
-São 8 e 49 estão já 22 graus e agora o novo êxito dos Iris da Fuzeta para este verão: “Atira-te ao mar”. A avó aproveita a embalagem: -Marquinhe, vai já ter com o tê avô ca maré hoje é boa pa ganhares uma nota.
Por fim o rapaz levantou-se, meteu um ice-tea no bolso e foi comendo uma sandes de queijo preparada pela avó. Levava também, mas metida na cabeça a música com que acordara, e já se sabe o que acontece nestes casos -ela não nos larga para o dia.
Apanhou o avó à porta da taberna: - Tá no ir ó não.
Mestre Toino que já tomara 2 de 5 resmungou:
-Vê lá se te alevantas má cêde quê já tô velhe pa trabalhar pa ti… ainda ê usava fraldas e já ia ó mar.
Ao que o Marco comentou trocista:-devia ser même bué da fixe o avó de dodotes assentade a borde do savêre. E o velho deu-lhe uma carolada na orelha enquanto retorquia:
-Se calhar pensas que do mê tempe avia cá essas mariquices.
Lá empurraram o barco para a água e fizeram-se à Ria Formosa, que já era tarde e o calor apertava. Daí a pouco começaram a labuta.
Mas a teimosa melodia lá vinha à boca do neto:
-«Mó, o qué que fazes aqui».
O avó esclareceu-o: -Pouque barulhe qu’zolhes das amenjoas se fechem.
Mas mesmo com tanto suor entre as cavadelas fundas feitas na areia Marco não conseguia deixar de pensar na música:
-«Má per qué que me dexaste da mão».
Passadas umas boas 3 horas de trabalho à torreira do sol o avô decidiu dar por terminada a tarefa e de regresso ao barco continuava a canção do momento :
-«Dá-me um bêje da boca e chama-me trazan».
O velho pescador já nada dizia, apenas abanava a cabeça, pensando com os seus botões, enquanto se dirigiam para o bote. Quando foi ver o resultado da apanha pelo neto não se conteve em puni-lo:
-Même assim ainda apanhástes muntas amenjoas...com um côrpe desses. Tem ma é vergonha, tem.
E como se fosse uma desgarrada, agora o moço:
-«Tá o mar fête dum cão, nan à choque nem brebegão».
Resposta pronta de Mestre Toino:
-Já me tás a enretar com essa merda de múseca. Ainda levas ma é uma cheparlada do mê da cara.
Para piorar a situação o motor do barco não parecia responder ao apelo manual de iniciar marcha, pelo que Marco se tornou voluntário à força:
-Agarra ma é dos rémes. Do mê tempe e até do tempe do tê pai conde era môçe remávamos o dia tôde. Estes moçes dagóra parecem fêtes de caca.
Ao ver-se ofendido o rapaz usou de novo a canção:
-«Tens cá uma mania que até dá dó».
Mestre Toino percebera a indirecta e quando o jovem se levantou para pegar os remos, ele desviou-se bruscamente para o mesmo lado do barco
Marco esbracejava estragado da vida enquanto na sua cabeça estalava novamente o refrão, desta vez entoado pelo avô:
-«Atira-te ó mar e diz que te empurrarem».
Mas dá a sensação que o Sr. António já tinha aquela fisgada, pois o motor do barco, que se afastava com a corrente, pegou logo a seguir. Marco, esse teve de nadar até à doca, que apesar de tudo não era muito longe.
À noite, depois do jantar, Mestre Toino e a mulher sentaram-se como de costume à porta de casa a falar com os vizinhos, comentado a quantidade de água gasta pelo neto, que finalmente vinha a sair, e ainda magoado com a partida do avô apenas dirigiu um:
-Boa noite avó, até amanhã!
Ela chamou-o: - Olha Marquinhe, espera aí que o tê avô tem uma coisa pa te dar.
Cinco contos para gastar no Festival do Marisco dessa noite. Marco agarrou na nota, que afinal era a paga do seu trabalho, e foi orgulhosamente rua abaixo sem agradecer ao avô.
Mestre Toino não resistiu e comentou:
-Fó mó, o chêre a prefume é má que munte. Tu é que tens uma mania que até dá dó.
(Um conto do meu amigo Pedro tecido (bilros?) com uma música dos Íris da Fuzeta, onde nos podemos deliciar com o
extraordinário falejar de Olhão)
Afinal não sou um careta que só ouve ópera. E, dizem-me fontes bem informadas cá de casa, até são portugueses...
As noites consomem-se na loucura das insónias transbordantes. Para lá do medo aparecem, por detrás das cortinas do silêncio, caminhos que convidam a simular estratégias de fuga impossível.
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