Saltar para: Posts [1], Pesquisa e Arquivos [2]
Malditos ciganos, não sabia o vento levá-los, guinchou a mulher do café ( presumo que a dona do estabelecimento, entendendo o café como edifício que alberga efemeramente transeuntes carentes), armada de balde e esfregona farfalhuda.
Mijou à parede, mesmo ao lado da sanita, nojento! vociferou impiedosamente, colocando uma cara-de-boca-de-cu.
O homem, provavelmente levado pela ventania, não se encontrava nas redondezas, enquanto a relinchante esfregadora procurava o unânime assentimento dos carentes, efémeros clientes da globalização. Eu, que tudo sei, poderia adiantar que o vi agora mesmo entrar no barbeiro do quarteirão seguinte. Mas que interesse tem isso para agora...
Depois do árduo trabalho de limpeza da retrete, a senhora empresária sentiu-se aliviada. A sua alteridade reforçara-se. O “nós” consolidara em ritual suspenso e ávido de movimentos de nucas.
Sentou-se com a barba de cem dias. Pediu café. E, para agradar aos fregueses, uma aguardente velha. Seguramente mais velha que a sua barba e mais nova que a sua vida. A aguardente é claro. O que nada nos adianta sobre a sua idade. A dos dois é claro. A não ser que ambos tinham mais do que cem dias. O que já antes era óbvio: ninguém, com menos de cem dias, pede uma aguardente e nenhuma aguardente velha que se preze tem menos de cem dias. Que confusão. Quem disse que o caminhante fazia o caminho?! Voltemos ao caminho.
Tragou primeiro o café com cheirinho e depois, devagar, em pequenos goles a bebida ardente. Socializando-se com gozo. O tempo parou por breves instantes. Só o vento se ouvia inquieto.
O antropólogo sentia a nova pele aconchegar-se ao "velho" corpo enquanto um prazer intelectual profundo o colocava nos interstícios do tecido social e lhe corrompia a identidade. O tempo, como atrás víramos, parara e era preciso dar-lhe vida. A festa não pode ser eterna. A sociedade é um fluir incessante que não pode parar. Parar, como tão bem Lapalisse frisou, é morrer. Ficar encantado à espera do sapo. Ou do príncipe?
Esticou o gozo até onde pôde e subitamente levantou-se e pagou. Antes de sair foi ainda à casa-de-banho. Depois, despedindo-se com um claro “até-logo”, entrou no vento e desapareceu rapidamente na direcção do quarteirão seguinte. Alguns fregueses pensaram a medo: que cigano simpático...
O café entrou no remanso turbilhão (rodando para a direita como sempre acontece no hemisfério norte) da normalidade. As conversas de catação voltaram a escorrer sem fio afrouxando as tensões. Só o vento se ouvia inquieto.
Mas o tempo, que não é previsível, logo voltou a entrar em turbilhão ( agora rodopiando para esquerda como sempre acontece, com os turbilhões catastróficos, no hemisfério pobre) gerando uma confusão momentânea na ignorância dos clientes.
A dona do café, que não era ingénua, tinha ido espreitar à casa-de-banho.
Malditos ciganos, uivou. Não sabia o vento levá-los, guinchou.
Alguns fregueses pensaram sem medo: os ciganos são sempre falsos.
Eu, utilizando as mesmas premissas, cheguei a outras conclusões: nunca se pode confiar num antropólogo enquanto trabalha. E, manuseando outras premissas, diria mesmo: muito menos quando não trabalha.
Seriam umas onze horas, duas horas passadas sobre os dramáticos acontecimentos ocorridos, quando o antropólogo voltou a entrar no dito estabelecimento comercial. Alguns fregueses, especialmente freguesas, seguiram o seu deambular ondulante, pelo café, até à mesa escolhida para pousar. Roupas primaveris e uma cara escanhoada pareciam fazê-lo mais novo.
Mais novo que certas aguardentes velhas.
Sentou-se e pediu um café e um queque com passas. Mordiscou o queque enquanto ia bebendo o líquido quente, devagar. Adorava a mistura dos dois. Molhou mesmo o bolo no café.
O ambiente não se alterou significativamente com a entrada do estranho. Um caixeiro-viajante, pensou uma mulher mais nova, mergulhando em viagens para longe. O vento amainara lá fora.
O cheiro a mijo ainda não se tinha dissipado completamente apesar da esfregadela profissional. A dona do café estava feliz. A vida corria sem sobressaltos e os momentos eram dentes em roldanas de velho relógio com corda para uma semana.
Passado um bom bocado, e depois de umas miradas com interesse à telenovela da hora do almoço que corria na televisão, o antropólogo levantou-se, dirigiu-se ao balcão, pagou, foi à casa-de-banho e saiu despedindo-se:” até sempre”. Os fregueses responderam-lhe cordialmente e retomaram a postura de efémeros carentes sem lugar nem futuro.
O cheiro a mijo tinha aumentado consideravelmente.
Malditos ciganos.
A dona do café atribuiu-o ao vento que amainara lá fora.
chegou a Velha
e disse
olha uma nêspera
e zás comeu-a
Mais um grande campeão!
Num campeonato fascinante, num país de futebol moderno e espectacular,num mundo desportivo sem influências políticas, sem arbitragens duvidosas, onde a incerteza dos resultados magnetiza, prende arrasta multidões, o Al-Alhy conquista o título, juntando-se a outros papa troféus, faltando ainda 5 jornadas para o fim.
O planeta rende-se e pasma! Tetra campeão!
A previsibilidade é a característica mais flamejante e mágica em qualquer actividade humana...
PS: Manuel José foi dos melhores jogadores que já vi jogar. Nas minhas deslocações ao velhinho e apertado rectângulo de S. Luís, a sua magia regendo o grande Sporting Club Farense, comovia e fazia sonhar o jovem adolescente que eu era
Há anos que não dava um chá de caridade. Baixou ligeiramente o som do gira- discos. Ópera. Sentiu uma doce alfinetada a dirigir-se, do tórax, em direcção ao púbis e levantou-se para o vazio. O cérebro recusou-se a elaborar a continuação da vida e estatelou-se, desajeitadamente no tapete persa. A emoção traíra-lhe as cruzes.
Quando, minutos mais tarde, reabriu os olhos, pareceu entender tudo o que entrevira antes. Mãos à obra.
Toda a tarde rabiscou cartões a anunciar uma festa para a semana seguinte. Não faltariam ministros, duques, deputados, chefes de, estrangeirados, primos do 7ºgrau , pintores, músicos e amigos chegados.
Durante a semana o reino andou em frenesim. Não se falava noutra coisa.
A misteriosa senhora contratou os melhores mordomos, coisa que sempre dispensou, para a ocasião solene. Segundo se dizia o mordomo é sempre o culpado, e assim, nada melhor para encobrir o imenso crime que se pressentia no ar.
Chegado o dia fatal a anfitriã deslocou-se ao cabeleireiro, que por sinal não estava convidado, para ajeitar as melenas.
· Faça-me um penteado de peixe, pediu delicadamente.
· Goraz ou redfish , perguntou sensibilizado com tamanha honra.
· Nem uma coisa nem outra, preferiria antes carapau alimado .
· Com certeza , referiu sem se mostrar magoado, vou-lhe fazer um penteado bem avinagrado.
Às seis da tarde o portão do sumptuoso palácio foi aberto de par em par, deixando entrar aos trambolhões os ilustres convidados que se amontoavam à entrada.
Estava ali reunida a nata do reino. Bebericando, petiscando e convivendo sem pressas, o chá foi decorrendo a contento de todos. Foi então que se anunciou o próprio rei:
· Cá estou eu sempre alegre e fanfarrão que mesmo sem convite vos venho alegrar o serão! Cantarolou entrando ao ritmo de Strauss.
· O rei vem nu! Gritou uma criança presente, enquanto era arrastada para as masmorras do palácio.
A multidão de convivas espumava de prazer enquanto a dona da casa recebia S A R , dando qualquer desculpa esfarrapada para o facto de não o ter convidado - como se tudo não tivesse sido premeditado...
O monarca compreendeu e juntou-se a um grupo de pederastas, que bebericando o chá morno, lhe apreciavam o minúsculo apêndice do baixo ventre.
Aproveitando o entretenimento geral, a velha senhora retirou-se um pouco e voltou com a maçã envenenada que tinha preparada para executar o projectado.
O rei, já ligeiramente embriagado, rodava de grupo em grupo animando a festa. Agora divertia, com o seu humor imanente, os amigos chegados. As nalgas reluziam-lhe à luz difusa do candelabro.
Meus senhores e minhas senhoras, interrompeu a velha com a maçã na cabeça ( velho costume do reino ), não queria deixar de aproveitar a presença de S A R sem lhe agradecer a honrosa presença nesta modesta casa. E por isso, nesta ocasião especial em que comemoramos; com este singelo chá de caridade; o nascimento do meu segundo dente do siso, gostaria de oferecer-lhe esta simbólica maçã, colhida na árvore da vida.
Romperam os aplausos na sala enquanto o rei recebia em suas mãos tão valioso presente.
Comovido, avançou para o meio do salão para soltar algumas palavras de agradecimento:
Como sabem, começou enquanto deixava escorrer algumas lágrimas pelos ombros abaixo, a maçã é o brasão da minha família desde tempos imemoráveis e esta está tão apetitosa que , com a vossa licença, não posso deixar de a comer já. O ruído da dentadura cariada do rei penetrando a carne viçosa do fruto da árvore da vida ecoou no salão fazendo vibrar os cristais. À segunda dentada o rei revirou os olhos e tombou no gasto tapete persa: estava consumado o regicídio.
A festa continuou até às tantas e ninguém acusou os mordomos do sucedido. Só alguns, por certo maldosamente, acusaram, sem convicção, o cabeleireiro despeitado.
A subscrição é anónima e gera, no máximo, um e-mail por dia.