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Os homens da mesa do fundo já algum tempo que se mostravam inquietos. Afinal o que tinha acontecido ao Triturador? Uns diziam simplesmente que não sabiam. Outros que o tinham visto para o lado da nação vizinha. Ainda outros, sem opinião, queriam era que ele nunca mais aparecesse.
Tudo tinha começado numa tarde triste de cinzento celeste sem peúgas de lã nos pés.
Um homem - desconhecido - entrou sem pressas e pediu um café com sabor a fim do mundo. O empregado serviu-o - aliás, e toda a gente o afirma, delicadamente. Deu dois goles e, sem que ninguém esperasse, três coices no telhado ( como uma conhecida mula ) explodindo:
- Lá café é. Mas pretender que isto saiba a fim do mundo, valha-me Santo Ambrósio.
Era um homem viajado. E realmente, dar de beber café sem sabor a fim do mundo a um homem viajado. Xô Satanás.
- Mas, começou por balbuciar o empregado, ainda no outro dia esteve cá um senhor que veio do Porquemenistão e até acabou por encomendar três garrafas ao patrão, concluiu mais convincente.
As cadeiras aprovaram com rangidos secos. O patrão, já citado, saiu pelo buraco do balcão e escapuliu-se, num passo doble, pela rua fora. Era liberal e até deixava aos empregados o poder de decidir por ele.
Na rua caiam pingos lancinantes da semana passada.
O patrão entrou no barbeiro da esquina, sentou-se e pediu uma barba mal passada.
- Por certo, gorgolejou o barbeiro, rabiscando por entre as barbas do armário uma excelentemente mal passada. É que o patrão era cliente e amigo assíduo. Aqui tem.
- Muito obrigada meu amigo. Até pareço um pederasta, disse o patrão ajeitando a barba abaixo do nariz.
- Já agora arranje-me também um bigode a condizer, disse o ainda patrão.
O barbeiro voltou a mergulhar no armário das barbas e depois de alguma procura esbofeteou-se quatro vezes mantendo os olhos em forma de bico de pato.
- Ora, como tenho eu a cabeça. O senhor pede-me um bigode e eu a queimar o seu tempo, vejam só, a procurá-lo na gaveta das barbas. Com franqueza.
- Ora, ora, sorriu o patrão, o meu tempo não arde.
- Lá está, exclamou o barbeiro enternecido, um bonito bigode mal passado a condizer.
- Excelente, borrifou o patrão.
Acertaram as contas enquanto o barbeiro retirava alguns bigodes do casaco, o que lhe dava um ar de homem das arábias. E o patrão saiu protegendo o bigode e a barba da chuva.
Seriam umas três da tarde quando um pederasta entrou no café. Cumprimentou com cortesia e pediu um café com sabor a fim do mundo.
O empregado engoliu em seco, deu três passos em frente, quatro à retaguarda e acelerou pelo buraco do balcão. Viram-no depois espreitar, profissionalmente, por cima da máquina de café com sabor a fim do mundo.
A chuva não parava e, como já era da semana passada, obrigava os transeuntes, sem guarda-chuva, a entrar no café, o único do país.
O homem desconhecido, a quem o café não sabia a fim do mundo, apresentava um olhar estarrecido e o beiço descaído, mostrando aos presentes a sua infelicidade.
Três cães, uma galinha e um guarda-fato atravessaram a rua mas não entraram. Seguiram as pedras da calçada cor de laranja que indicavam o caminho da fronteira.
Fez-se um silêncio embaraçoso quando o empregado iniciou o percurso dançante por entre as mesas do estabelecimento, com o café fumegando sobre a bandeja.
- Sil vou pleit.
- Merci bom cu.
O pederasta tirou um cigarro da cigarreira prateada que tinha no bolso esquerdo da camisa, e acendeu-o com classe. Deu três passas fumacentas e observou demoradamente a rua seca da chuva da semana passada.
O compasso apertava as goelas da clientela e mesmo as mesas pareciam respirar a custo.
Aproximou os lábios da chávena e sorveu. Primeiro um gole, depois outro e depois outro. Sem ruído. Pousou. Os olhos, até ali calmos, tornaram-se num mar de aspecto negro e voraz, saindo a espaços um raio esverdeado da íris que descendo primeiro, logo se erguia para de novo cair no estrado, fazendo fumegar as tábuas desenvernizadas. O corpo que se mantivera numa estabilidade ondulante, começou a contorcer-se como se quisesse expulsar de si todos os líquidos que possuía. A torção chegou a um ponto que o corpo se alongou saindo as pernas e os pés pela porta e chegando o tronco e a cabeça ao tecto sujo do café. Qual corda de jogar pião.
Depois, subitamente, como se tivesse sentido frio nos pés, torceu no sentido contrário fazendo tal deslocação de ar que alguns chapéus voaram da cabeça curiosa dos seus donos e voltou à posição de pederasta sentado numa mesa de café apinhada de ignorantes, sem sentido do que era realmente um cabide sem coração aos berros na confusão sem peias da tarde.
- Excelente, traga-me outro, aclamou fazendo balouçar o polegar entre os cotovelos.
A assistência relaxou soltando uis de prazer para logo retesar os sentidos: o homem viajado levantou-se, primeiro o tronco e só depois as pernas.
- Eu, disse engolindo espuma, sou um homem de bem. Não queria de modo algum que os senhores me julgassem mal. Mas perante uma afronta à honra e à vergonha dos meus antepassados, sou capaz de cometer o mal suficiente para fazer parar o Sol.
Lá fora a chuva actualizou-se e molhou a calçada da fronteira. Os sussurros da trovoada faziam-se ouvir vindos do outro lado da rua e o doce Inverno parecia não se importar com os uivos hipantropos dos cães.
- Em tempos, continuou sem se incomodar com as caras oblíquas dos ouvintes, fui um homem temido. Um herói rejeitado, um marginal benfeitor.
Calou-se por alguns instantes, enquanto se atirava pelos confins da memória, e algumas lágrimas rasgaram-lhe as faces curtidas no tempo infinito.
- Eu fui o Triturador.
Um furacão richteriano sacudiu a assistência, abanou-a até o terror a fazer paralisar o pensamento, baralhou-a até a tornar uma massa homogénea de medo.
Até o pederasta, que pelos vistos não era para ali estar, fez figas e sentiu o mar todo a entrar-lhe na cabeça (ninguém reparou que as suas pilosidades faciais estavam a ficar mais passadas e a dar-lhe um ar masculino e conhecido. E ainda bem, pensaria o próprio se o tivesse pressentido ).
O Triturador!!!
Pasme-se o medo. O homem viajado saiu com os olhos marinados tomando a direcção do Levante.
Nascera entre dois castelos. À noite costumava espreitar os rebanhos a pastar por entre as ameias, enquanto fumava os cigarros roubados ao pai e ao avô.
Contrariamente ao que diziam, nunca gostou de criar problemas. Uma vez dera o salto mortal sobre a opulenta barriga do avô Gestrudes que dormia a sesta. Rebentou-lhe a úlcera. Tanto barulho por causa de uma coisa que ele nem sabia o que era.
Valia-lhe às vezes a sua tia solteirona que se riu quando ele tinha três anos e espatifou quantos pratos havia na cozinha. Bebiam até às vezes uns copitos ...
Aqueles malditos castelos assobiando ao vento frio do Norte é que lhe davam a volta à cabeça. Chegou a ter batalhas diabólicas contra galinhas, gansos e afins. A espada recortava os ares e os pescoços enquanto ressoava por todo o vale o grito de Santiago. Que grandes petiscadas as daquela família.
Na primeira comunhão escarrou a hóstia na cara de S. Cipriano. Só depois, na morte da tia, voltou a ter tanto prazer. Riram como doidos até ela revirar os olhos. Depois chorou pela primeira e última vez na sua vida. Ninguém mais o compreendeu. No funeral espancou as carpideiras, o padre e o enterrador . Beijou os castelos e fugiu levando a vivida pistola do avô Gestrudes .
Correu praias, estradas e cidades. Possuiu mulheres e dinheiro. Matou. Espatifou o corpo contra nada e sorriu. Esperou por uns e foi esperado por outros. Ninguém gostou dele nem ele de ninguém.
Foi então que veio a guerra, lutou pelos castelos de pedra brincando ao vento. Já não era a velha pistola da família, eram as pedras do mundo que se abatiam sobre o mundo. Desesperou aos pés do inimigo e esperou um comboio para longe dos homens. À noite, já sem saber o que a esperança e os sonhos ousavam dizer-lhe, jurou não mais procurar relógios nus na planície.
Esperou pelo pôr-do-Sol e foi ter com a tia.
Mexeu-se outra vez e as costas estalaram. A polícia já não é incompetente como dantes.
Lembrava-se de tudo como se presenciasse a cena: à direita um actor de cinema com os olhos em bico do leite de coco com aguardente de cana. O crepitar da fogueira enchia a sala de recordações tristes. Embevecida no fogo estava ela. Porque fora ele meter-se naquele covil de lobos sem unhas?
Bebeu mais um copo. A cabeça recusava-se a pensar nas responsabilidades do dia a dia. Bebeu outro, de um trago só. Maldita cocaína, ouviu a consciência com voz grave de pai dos anos trinta.
- Por favor, eu tenho um sapato calçado nos pés dela, rugiu à multidão apinhada no bar-semi-escuro.
- Não ouvem, pensou sorridente.
Lendo uma revista pornográfica, desta vez à esquerda, estava um cavalheiro distinto mas sem gravata. Ela sorria avermelhadamente com a calma de quem jogava. Roleta russa.
Sentia desejos de ir com aquela mulher para a cama. Sim. Ela até era bonita e olhava para ele com uma expressão de talvez...
Mas que confusão lhe atravessava o espírito/ficção banal. Ela era uma visão sem compromissos e até sorria.
Agora era o malvado joelho que teimava em não funcionar. Nem a perna conseguia cruzar. Que pontapé, essa gente devia era ser jogadora de futebol.
Na poltrona do meio dormitava um velho jornalista corroído por notícias de todo o mundo. Tinha sido, até, correspondente na Polinésia.
Que homem viajado, pensou.
Ela chegara-se mais ao fogo como se precisasse de mais calor. Era a sua, dele, hora. Pé ante pé, chegou-se à lareira e, com a tenaz, retirou uma brasa do braseiro. Acendeu o cigarro à americana. Soprou o fumo, primeiro pelas narinas e depois através dos dentes.
- Magnífica casa, meteu-se, nesta ocasiões transbordo de amor.
Sentiu-se alarmado com as palavras que deixara escapar. O jornalista farejou notícia. O cavalheiro distinto sem gravata ousou mesmo esboçar uma retirada discreta, sem o conseguir. Pela porta dos fundos apareceu quem se esperava: o polícia secreto do governo sombra.
Sem conseguir reagir ao desencadear dos acontecimentos, e com dores acentuadas nas costelas, deixou-se prender por ele e... por ela.
O actor de cinema com os olhos em bico, saiu de cena pela porta baixa sorrindo ligeiramente.
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