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(acabadinho mesmo agora, depois de uns dias de aflição, cá vai sem revisão nenhuma...)
O sexo dos anjos
O anjo só tinha uma asa e isso incomodava-o. Voava aos supetões, para baixo e para cima, como um pardal. A elegância própria do voo dos anjos era-lhe estranha. Por inimaginável que soe, tinha nascido assim. Nascer, para um anjo, já é uma aberração. Os anjos são, por natureza (sic), eternos e por isso inascentes e imorredoiros. Aquele anjo, este, não só tinha nascido, e por conseguinte faltava-lhe o infinito à posteriori, como o tinha feito sem uma asa. Se seria imortal só o devir nos traria a resposta. Acreditamos que sim: a vida libertá-lo-ia do padecimento final.
Quando o vento soprava irregular e violento, o problema do voo tornava-se deveras complicado. Chegava a parecer uma folha de árvore à deriva nos ares, rolando sobre si próprio, parecendo, a todo o momento, que se iria despenhar. Dir-me-ão os leitores, sábios na complexa matéria da aerodinâmica do voo, que só com uma asa nem um pássaro voaria. Nem o mais leve dos fuinhas. Mas, meus amigos, a matéria que compõe os anjos não é a mesma que nos acompanha a realidade. Não sendo por isso suscetível a interpretações através das fórmulas e modelos físicos que interpretam o movimento e explicam as suas trajetórias. Ninguém alguma vez pôs em causa a ascensão da Nossa Senhora. E que eu saiba a virgem senhora não estava municiada de apêndices alados. Um sequer. Subiu e pronto. A propulsão da ascensão nunca foi referida como impossibilidade de viagem. Ascendeu e nada há a discutir. Aliás, um dogma não se discute. Este anjo voaria mesmo que não tivesse asas. Como a Nossa Senhora, Jesus Cristo ou o mais pragmático Maomé. Também não consta que o Espírito Santo, que tem as asa regulamentares – sempre duas, as use nas suas deslocações. Alguém já O viu batê-las? (para evitar confusões, alerta-se os leitores para que nos referimos ao bater de asas e não de outras batidelas que o espírito crítico sempre associa a “batê-las”) Sentiu a deslocação do ar do batimento da envergadura? Então por que duvidam das capacidades voadoras desteanjodeumaasasó? Aceito a desconfiança no abstrato. Mas se eu o afirmo é porque é verdade. Este nosso anjo voava! Aos supetões, mas voava. Ia a todo o lado e não recorria às pernas para grandes caminhadas. Ultrapassava todos os obstáculos terrenos recorrendo ao voo. Como qualquer ente alado. Percebido!?
Mas a sua tristeza consumia-lhe os dias. A risota dos outro anjos escarnecendo do seu voo, era insuportável. Nem pareciam anjos. Os anjos são anjos. A essência do bem e do bom iluminando o mundo. Os homens por quem estão encarregados de velar. O mundo visível e invisível; real e espiritual. (num aparte que me deixa envergonhado como escritor, quando escrevo a palavra espiritual lembro-me logo de bacalhau espiritual, mnham,mnham) É certo que o Diabo era um anjo que foi destituído por malvadez intrínseca e imortalidade ímpia. São as exceções que confirmam a regra., diria, para manter a reputação das criaturas que medeiam entre os homens e os deuses. Também a este nosso amigo anjo estava vedada a guarda de humanos. Que diria um pecador terreno ao facto de ter um anjodaguarda sem uma asa? E o mais grave, sei-o de fonte segura, é que os próprios arcanjos tapavam a cara com a asa à sua passagem. Riam para dentro envergonhados. O nosso anjo desesperava com a risota dos seus pares e superiores. Um dia tomou uma decisão drástica. Resolveu partir para longe. Se é que há longe ou distância para os anjos.
Abalou pela calada da noite, aproveitando uma reunião geral convocada pelo arcanjomor para tratar de assuntos respeitantes a uma nova conceção de competências para o desempenho da função de anjodaguarda - como estava liberto desta incumbências não tinha sido convocado -, caminhando pela estrada que levava ao mundo dos homens. A irregularidade do voo poderia chamar a atenção dos anjos de guarda. De guarda dos anjos, neste caso. Já lhe doíam os pés e as pernas quando parou para descansar da caminhada. Sentou-se numa pedra na margem do caminho. O crepúsculo cobria toda a extensão à sua volta. Massajou as pernas e os pés e recomeçou a caminhada. A falta de uso entaramela as estruturas, lentifica a ação. Estugou o passo rasgando a escuridão, renovado pelo descanso. A fronteira estaria, pelos seus cálculos, já descontada a pouca experiência em atividades pedestres, ao cair da noite. A decisão era de alto risco. Tinha-a ponderado longamente e a decisão tomada estava bem alicerçada na longa reflexão. Atravessar a fronteira para o mundo dos homens significava uma viagem sem regresso. Desde que o Paraíso tinha sido extinto, por incumprimento de contrato por parte dos moradores de tão aprazível condomínio, que anjos e homens nunca mais conviveram irmãmente. Pouca gente sabe, mas o Paraíso foi mesmo extinto. Expulsos foram Eva e Adão e toda a pandilha de anjos e arcanjos e seus semelhantes. Homens, para as rudes terras das sombras. Anjos para junto do senhorio de todos e de tudo. Ainda hoje não está esclarecido o papel dos anjos nas desventuras do primeiro casal aquando da precipitação no pecado original. Segundo fontes esptéricas geralmente bem informadas tudo não teria passado de uma questão de lutas fratricidas e fracionárias entre anjos por questões de poder. Políticas de anjos, diríamos hoje. Bem, deixemos estas complexas manigâncias, se bem que muito interessantes, de assuntos politico-teológicos. O que aqui nos interessa são as aventuras e desventuras de um anjo solitário e rejeitado que arriscou a sua vida para renascer. Que ousou recomeçar a partir do nada num mundo hostil e desconhecido.
A luz da madrugada inicial já inundava o vale que separava o mundo dos anjos do mundo dos homens. Ainda hesitou antes de transpor a fronteira. Era o tudo ou nada. E o nada aproximava-o de si próprio. O tudo do mundo anterior ao nada. Entrou. Nesse mundo onde não havia significado nem significante. Onde a razão de existir não existia. Nada tinha explicação e só a morte parecia impor alguma ordem na vida dos homens. Uma capicua existencial.
Entrou, decidido, sabendo que nada voltaria a ser o que tinha sido. Compôs o casaco grosso e comprido, cobrindo a mono asa, e avançou pela estrada silenciosa que penetrava o bosque vizinho. Depois de algumas horas de caminhada, sentiu-se, pela primeira vez, livre como nunca o fora. Ouviu um ruído de motor a aproximar-se. Um camião velho e desengonçado evoluía lentamente ao seu encontro. Estendeu o polegar direito apelando à boleia. Um marreco dos grandes, pensou o camionista enquanto se preparava para refrear a viatura. Para onde, perguntou parando junto ao caminhante. Para onde, repetiu o anjo. E para onde vai o senhor? Para a aldeia da mina. Não que lá more, vou carregar minério para levar à grande cidade. Pode ser, atalhou o anjo sem entusiasmo.
Até Ferrarias, assim se chamava a aldeia da mina, não trocaram uma palavra. Quando finalmente o distinto camião se deteve estremecendo convulsivamente, entraram na taberna que dominava a praça central e beberam duas aguardentes de figo. Finada a convivência, apertaram as mãos e despediram-se no mesmo mutismo da viagem.
O anjo tinha as coisas bem pensadas. A aventura tinha riscos eminentes e consideráveis. Mas, desde o longo casaco de lã aos passos a seguir depois de instalado, tudo estava registado num roteiro mental longamente congeminado. Escolher um nome, encontrar uma morada, arranjar uma ocupação. Forjar uma identidade, uma biografia credível. Depois, só depois, viria o passo mais arriscado e complexo. O extirpar da asa e, assim, um novo nascer. Ângelo. Era um nome vulgar e ao mesmo tempo mantinha-lhe um halo da sacralidade de antanho. Instalou-se numa velha pensão, num quarto esconso e barato com vista para o enorme monte de escombros junto à entrada da mina. A ganga dos dias. Com uma facilidade inesperada, conseguiu trabalho na mina. Seria mineiro. Escavando as entranhas da terra. As profundezas labirínticas da escuridão. Para um anjo, habituado às elevações etéreas, seria uma experiência dolorosa. Mas que o levaria ao lugar do homem mais rapidamente do que qualquer outra profissão. Grandes tormentos atiram-nos para o centro das realidades. O centro da Terra.
O trabalho era duro e sujo mas mostrou-se o ideal para os primeiros tempos de vida num mundo novo. O frio das profundas galerias permitia-lhe trabalhar sem retirar o estranho casaco. Os colegas de trevas eram pouco faladores e, ainda menos, curiosos. A dureza do trabalho não se ajustava a muita festa pós-laboral e, portanto, a dar nas vistas. Até para o varrimento visual que os anjos fizeram a toda a região nos dias seguintes à fuga, se bem que nada pudesse ser feito para o levar de volta, a não ser através da palavra engenhosa e sugestiva, as profundezas das velhas galerias eram impenetráveis. Estava seguro num ambiente instável e perigoso. Os proventos amealhados serviriam para atingir o último objetivo a concretizar no sentido da integração total. Andava, não diríamos feliz, sossegado. Os mineiros são pessoas reservadas e menos curiosas. Pouco se interessam pelas vidas dos que com eles esgravatam as profundezas. As entranhas da litosfera. Se a princípio o inchaço proeminente que empolava o velho casaco tinha estranhado a alguns – havia mesmo quem tivesse notado ondulações da relevante corcunda -, o que é facto é que não tinham passado de leves e efémeras especulações. Na escuridão labiríntica, na rudeza do trabalho, quem quererá lá saber de marrecas movediças. O espírito de todos preocupa-se, sobretudo, com o inimigo número um dos mineiros: o grisu assassino. E bastava que um dos rouxinóis deixasse de cantar para que todos ficassem de sobreaviso. O medo invadia as estreitas galerias e retesava os corpos. A pele seca colava aos ossos e o inferno era uma visão mais aterradora que a mais aterradora realidade da superfície. Talvez até por uma questão de proximidade. Portanto, ali não havia tempo a perder com frivolidades. Ali as especulações deambulavam, quase sempre, pelos mais importantes assuntos da filosofia ocidental: a vida e a morte.
O capataz gostava dele. Silencioso e trabalhador. Cá fora, discreto como um louva-a-deus. Nada de confusões com bebida ou mulheres. Estas últimas a grande perdição dos mineiros. Uma máquina eficaz e competente. E, ainda por cima, pese embora a marreca, robusta e fiável. Num mundo cruel onde parte dos mineiros escarrava sangue e minguava com os dias, perdendo jornadas em longas esperas nos hospitais da grande cidade, isto era uma virtude sem preço. Aliás, como todas as virtudes. Era um bem raro a conservar. O homem-das-costas-de-tartaruga, era assim que o conheciam nas ruas de Ferrarias, estava perfeitamente integrado na comunidade mineira. Um parafuso sem folgas na porca certa.
Um domingo, o único dia de descanso na mina, enquanto tomava uma aguardente de figo na taberna da praça central – nunca ia além de um único copo, apesar da resiliência adquirida nos duros trabalhos da mina, ainda era um anjo e os anjos aguentam pouca bebida, sobretudo branca - , deu com os olhos pousados numa criatura solitária a uma mesa na sombra da tasca. Pareceu-lhe familiar. Reconheceu-o. Era o camionista da viagem inicial, ou, de outro ponto de vista, final. Pediu autorização para se sentar à mesa sombria do camionista e perguntou-lhe o que o trazia ali. Uma pequena avaria tinha retido o velho camião na aldeia. Só daí a dois dias iria transportar o minério para a cidade. De repente veio-lhe à ideia o objetivo que lhe faltava cumprir para se tornar um homem como qualquer outro homem. Dava-me uma boleia, perguntou receoso. Ora essa!, a companhia alivia-me a condução. Um animal daqueles é uma fera teimosa. A companhia alivia-me os braços, amolece a passagem do tempo.
Terça feira às sete e meia. Combinado!
Faltava agora conseguir do capataz licença para dois ou três dias. Na segunda, depois das doze horas de trabalho habitual no mundo das trevas, dirigiu-se à casota de zinco situada à entrada da mina. Bateu no metal ondulado. Entre, respondeu à batida uma voz cavernosa de dentro da lata. Tirou o boné e penetrou o escritório cheio de papéis por todo o lado. Estantes, mesa e chão. Óleo e pó de carvão impunham um ar irrespirável. O que o traz por cá, perguntou um homem velho de face tisnada e vincada por profundas e sinuosas rugas. Como vales em Marte. Ah, é isso! Pois bem – regurgitando uma tosse convulsa e profunda e seca de dentro das galerias da mina - , dou-lhe até o resto da semana para gozar na cidade. Mas cuidado, aquilo é um mundo de esparrelas e aldrabões. Muito cuidado! Agradeceu sentidamente e, pela primeira vez na vida, de anjo e de quase homem, sentiu-se feliz. De que vale atirar os problemas para trás das costas se continuas a olhar para trás. O pescoço vai continuar a doer-te de tanto o torceres…
Desculpou-se com um problema de saúde. Um prolema como outro qualquer. Coisa de pouca gravidade mas que necessitava de vigilância. E, por estranho que possa parecer, não andava muito longe da verdade.
Há muito que tinha marcado na memória futura o que estava a acontecer. O que determinava os seus passos e os seus pensamentos estava registado no passado que se estendia pelas veredas da memória. Agora era só desenrolar o palimpsesto que as continha. Na grande cidade havia um cirurgião especial e famoso. Famoso pela sua competência e eficácia em amputações e ectomias. O seu consultório seria a cidade e a cidade toda estaria dentro das paredes daquela oficina onde se diminuíam o peso e as finanças das mais importantes e afamadas criaturas do país.
No dia combinado uma morrinha leve caía na paisagem sem cor. O dragão das estradas refulgia na neblina violeta, carregado de carvão até não poder mais. Bom Dia! Bom Dia! Vamos! Foram as únicas palavras na manhã incomum. Convulso mas sereno o velho camião avançou ao encontro da luz difusa que se adivinhava. A cidade grande ficava a uns duzentos e cinquenta quilómetros de Ferrarias. Percorremos as montanhas da cor do enxofre navegando por uma estreita e sinuosa estrada que acompanhava um rio enegrecido. Por vezes atravessávamos gargantas tão apertadas que a escuridão se impunha como noite de breu. Nas íngremes subidas, podíamos analisar os pormenores ínfimos das crateras incontornáveis que corrompiam o alcatrão rarefeito. Apreciar a graciosa cor das flores das encostas. Mesmo cheirá-las. Se alguém se apeasse, ultrapassaria a velocidade da máquina. Mas a companhia era confortável e ninguém afrontaria a generosidade da viatura. O tremor sacudia a viagem. Condutor e anjo, anjo e condutor balouçando-se para frente tentando aliviar o esforço ciclópico do motor. Nas descidas, o horror dos abismos. Serenava a máquina, arrepiavam os passageiros. Passageiro riscando a inconveniência da vida. Atentos ao desenrolar do silêncio. Ao caminho sem destino do destino. Não há, na reflexão grotesca dos sábios, respostas para a emergência dos acontecimentos. O entendimento do acaso é uma tarefa maior do que a amplitude dos passos. A existência precede a imaginação e confunde a interpretação do medo.
Aldeias desertas desfilam no ecrã baço do para brisas. Quando o motor serenou na lentidão do planalto, na infinitude da longura, parámos no largo da igeja duma dessa povoações estagnadas no pântano do tempo. Bebemos dois copos de vinho, um cada um, e acompanhámos com alcagoitas avulso. De dois calendários fora do prazo acenavam mamas volumosas. Mulheres nuas que o tempo devorava. Na janela sobre o parapeito da janela, um pintassilgo entoava trinados tristes. Outro ser alado parecia sorrir na desolação da tarde. Pousava o olhar vago sobre as mulheres que regiam o tempo. Sentia agulhas a penetrar-lhe a memória. A escarificar-lhe o ventre revolvendo as entranhas. A nudez das intumescidas glândulas atiravam-no para o passado longínquo onde só havia unicidade e lisura nos corpos. Onde a claridade regia a ação e o outro não era senão o prolongamento do outro. As curvas da carne empolando a pele inquietavam-no, sem receio. Havia mesmo uma pequena alegria que o animava na contemplação do outro. O outro que oferecia o desejo da diversidade, apelando à união das incompatibilidades. Não há serenidade nem planura nos homens incompletos. O outro é o espelho que nos transforma no todo. A fusão entre o efémero e o eterno. A atração numinosa que dá luz à vida. Assim estava nestas reflexões virgens, quando o condutor o acordou. Os companheiros de viagem são os nossos anjos da guarda… Vamos. E foram. Meteram gasóleo no velho camião e arrancaram. Saudaram ainda o rapaz que os servira. No café e na bomba. Fora única pessoa que viram na aldeia, se excecionarmos as mulheres penduradas no tempo.
A estrada abandonara o rio e procurava agora um caminho mais curto para a cidade. A longa estrada estendia-se em longas retas pelo planalto ondulante. O camião ronronava pelo asfalto silencioso.
Segunda-feira estou de volta à mina. Pela madrugada. Tinha-se afeiçoado ao marreco. O silêncio é um cimento poderoso. O silêncio partilhado uma garantia de viagem eterna no mundo da amizade. Adeus. O generoso camião foi engolido por uma densa montanha de fumo e poeira que envolvia a fábrica e desapareceu como se nunca tivesse existido.
Atravessou a pé a claridade difusa do final da tarde e entrou na cidade agora acinzentada. Sabia para onde ia. Tinha tudo planeado. Quem pudesse assistir à sua progressão a caminho do coração da cidade, diria que era um marreco triste envolto numa auréola de inconsistência. E não uma decidida figura a caminho do futuro.
O escritor é um criador de mundos. Podia, agora mesmo, colocar o anjoaspiranteahomem à porta da clínica de um afamado cirurgião especialista em amputações e manipulações plásticas diversas. Mas não seria curial. O escritor, como todos os criadores de realidades paralelas, também tem que ser credível. Deve explicações a quem o lê, por mais escassos que estes sejam. Como é o caso presente. Mas, dizia, estava tudo previsto. Os anjos detêm poderes que os humanos não possuem e mesmo um anjo com ambições em tornar-se humano não deixa de os possuir e poder utilizar. Assim tinha sido. Assim, mesmo que involuntariamente, continuaria a ser. Todos sabemos que a ação recorre a múltiplas fontes e competências, inconscientes e encriptadas, que o ser que a conduz não domina. Reflexos pavlovianos, obscuras energias do ID ou, simplesmente, produto de desconcentração ocasional são tão, ou mais, importantes para o processo que conduz à ação; e para o desenrolar desta; quanto a vontade consciente e repensada da mesma.
O anjo já conhecia o médico e o local onde este exercia. Para lá se dirigiu no final da tarde cansada. Dr. Anselmo Teixeira médico-cirurgião, assim rezava a placa à entrada do edifício altaneiro que se erguia na larga avenida. Ainda se fazia notar a vazante da hora de ponta. Gente autómata circulando em embalagens de lata dirigindo-se a esconsas moradias na periferia sonâmbula. Não há escolha na vida destas pessoas que se deixam conduzir por uma vida compartimentada e triste. Triste mesmo que simulando a alegria comprada em pacotes de felicidade disponibilizados pela sociedade de consumo. Nome feliz para uma sociedade que se auto consome para atingir essa felicidade. A felicidade cenoura que conduz os homens embriagados para fora de si próprios.
Tocou a campainha e apresentou-se-lhe uma voz feminina, quente e melodiosa. Consultório do Dr. Anselmo, por favor…. Tenho consulta marcada para esta hora. Nome. Ângelo. Ângelo Espírito Santo. Um momento… por favor… O tempo parou enquanto uns ruídos eletrónicos arrulhavam através do intercomunicador. Vou abrir a porta, obrigado. A fechadura estalou deixando a porta à mercê do pretendente a transpô-la. Entrou num marmóreo átrio e chamou o elevador. Subiu até ao 15º andar e desembocou num amplo corredor onde se abria uma larga e iluminada porta. A mesma voz, agora mais quente e mais melodiosa, recebeu-o com toda a simpatia. Senhor Ângelo, é a primeira vez que cá vem? Assentou. Então vamos preencher a sua ficha clínica. Enquanto cumpria as formalidades, a jovem apercebeu-se do interesse do recém aparecido pelo seu peito. Não que isso fosse novidade. O mesmo costumava acontecer frequentemente com a clientela masculina. Mas desta vez o olhar incisivo pareceu incomodá-la. Talvez porque fosse já tarde e não tivesse tido um lanche completo. O doutor tinha uma clientela numerosa e o trabalho era tanto que muitas vezes nem havia tempo para uma alimentação saudável e consistente. Mas que aquele olhar a estava a perturbar, isso não deixava dúvidas nenhumas. E não era que o marreco até não era nada de deitar fora. Visto de frente era mesmo bem interessante. Bonito e com uma pele clara e aveludada. Alto e com um rosto de deus grego. Corou até um pouco quando sentiu uma certa e determinada humidade, num certo e determinado sítio. Alarmou-se mesmo quando sentiu a humidade a impregnar-lhe as calçinhas. Pode sentar-se, ordenou tentando afastar a perturbação frontal. Foi sentar-se numa cadeira vermelha, no meio de cadeiras vermelhas, no meio da sala de espera. Rodeado de cadeiras vermelhas, as mamas do calendário que iluminavam a penumbra da tasca ao cair da tarde, vieram até ele e não lhe saiam da cabeça. E um formigueiro frio percorria-lhe o baixo-ventre arrepiando-lhe a pele. Até a penugem da asa inoportuna se eriçava por trás do corpo. As formigas subiam e desciam sem cessar.
Pode entrar, Sr. Ângelo, anunciou, com voz dengosa, a diligente profissional, barricada atrás do balcão alto e protetor, escrevinhando qualquer coisa debruçada sobre uma superfície indeterminada. Só se descortinava o cocuruto cabeludo.
Entrou no amplo consultório do Dr. Anselmo e deparou-se com um homenzinho magro, de bigode espesso e cabelo oleoso que mais parecia um maquinista de comboio. Estereotipo à parte, não havia mesmo dúvida de que se tratava do Dr. Anselmo em pessoa. A bata branca, o estetoscópio ao pescoço e o olhar inquisidor de cientista não permitiam outra síntese. A luz difusa da noite que trespassava a persiana dava-lhe um ar esverdeado e estranho. Mas de que se tratava do mais competente extirpador de excrescências inoportunas, disso não tinha dúvida nenhuma…
O que o traz por cá, perguntou simpaticamente o cirurgião. Ângelo iniciou então a longa explicação sobre os motivos que ali o transportaram e que poupo ao leitor que já os conhece de ginjeira. O fácies do cientista foi passando por uma série complexa e diversificada de caretas interessantíssimas de se observar. Marreco, e ainda por cima, louco. Do espanto inicial, passou a um riso convulso, para depois voltar ao espanto e terminar numa cara de introspeção profunda. Correspondendo às diferentes peças da bem estruturada explanação do paciente, a saber: identificação do problema, resolução pretendida, desocultação da asa e apelo à intervenção do ouvinte. Analisava agora a incómoda excrescência. Passou delicadamente a mão sobre as penas, cheirou, abriu a asa em toda a sua envergadura, analisou as articulações, palpou a massa muscular por debaixo das penas. Hum! O pensamento do Dr. Anselmo viajava por auditórios sem fim, seguidos uns a outros, com plateias esgotadas em delírio, tournée que desembocava em Estocolmo. Marcamos já a intervenção, disse entusiasmado.
Esta alegria indisfarçável e repentina provocou surpresa no autor da peça narrativa a que atrás aludimos. Mas, quando se junta a fome à vontade de comer, tudo parece caminhar fluentemente para a concretização do objetivo das partes. E quando, perguntou ainda apalermado. Daqui a três dias, no sábado, mais precisamente. Combinaram horas e procedimentos pré-operatórios e despediram-se. O cirurgião não conseguia disfarçar a alegria e o entusiasmo.
Quando deixou o consultório, o nosso perplexo anjoquequeriaserhomem estranhou a ausência da diligente empregada das mamas perturbantes, no posto de comando. A fome e o receio da despedida pós consulta tinham-na levado ao café do rés-do-chão. Só regressou quando viu, na avenida deserta, um marreco triste a afastar-se. Quando regressou à clínica, estranhou não encontrar o médico. Partira precipitadamente sem se despedir. Melhor, iria mais cedo para casa.
Deixemos, por agora, o nosso protagonismo, que se vai abrigar numa pensão barata e discreta das redondezas, e sigamos o rasto de luz que o expedito cirurgião estende atrás de si.
Acelera no seu Porche Carrera qualquercoisa, embrenhado em pensamentos eufóricos. O bólide ronrona deslizando na longa avenida que cruza a cidade. O condutor dá conferências atrás de conferências. Entrevista às cadeias televisivas mais importantes. Uma multidão de jornalistas e admiradores atropela-se para chegar perto de si. Uma estrela global de sorriso aberto percorrendo a estrada apoteótica até ao clímax da fama. O Nobel. Embriagado consigo próprio nem repara num ovni cruzando os céus aos supetões na periferia da cidade. Muito menos nos pontos brancos voando no rumor cinzento das alturas que controlam as vidas dos transeuntes terrenos e mortais. E até de objetos que atravessam a noite à procura de formas de vida que acrescentem significado e dignidade aos sofrimentos sedimentados na memória. Vai, sorrindo com a beleza da descoberta do caminho verdadeiro, na direção do infinito. Rasga o lodo existencial, deixando um rasto flamejante, uma cauda de fogo, na consciência da humanidade.
Chegou a casa, beijou a mulher e os filhos com uma alegria que não costumava ter, e subiu ao escritório do primeiro andar. Toda anoite preparou, cuidadosamente, a intervenção cirúrgica. Não deixou nenhum pormenor por tratar até porque iria realizar a operação em solitário. Precisava apenas da Clarisse para controlar algum paspalho inconveniente. O que ao sábado era quase impossível. Era dia de encerramento da clínica. O segredo é a alma da ascensão social. O melhor e mais célere elevador na mais difícil das subidas ao alto dos altos. Sobretudo de si mesmo. Filmaria tudo, como sempre o fazia, e, a deontologia profissional a isso obrigava, faria uma montagem com imagens de outras intervenções onde apareceriam outros técnicos que, supostamente, constituiriam a equipa que o tinha acompanhado em tão delicada quanto complexa e inovadora operação. Esta montagem era também uma operação difícil e arriscada. Pagaria caro se a montagem fosse descoberta. Do alto dos altos ao chão de Hades era um instante. Para baixo todos os anjos ajudam.
Depois de umas voltas pelos céus da cidade, pousara, vestira o casaco que deixara pousado numa velha laranjeira de um jardim, e regressara à pensão onde iria passar o final dos dias. No pensamento, apenas uma mulher. A diligente empregada do dr. Anselmo. O voo de despedida tinha-lhe tirado alguma dúvida sobre o caminho que pretendia seguir. Era uma mulher que o perturbava. Isso atribuía-o, satisfeito, `a sua cada vez mais impregnação no mundo dos homens. Sábado iria encontra-la e era isso que mais o entusiasmava. E o deixava inquieto.
Passou os dias finais deitado de lado, asa oblige, na estreita cama do quarto pensando nela. A mulher, é claro. Nem sequer sabia o seu nome.
No Sábado lá estavam os três. O dia tinha-se anunciado triste e um céu cinzento cobria a cidade. Uma humidade amniótica tudo envolvia parecendo confortar e proteger todos os que aspiram à mudança: os que convergiram na manhã inicial à clínica do cirurgião sonhador.
Clarisse compareceu exibindo um decote generoso. O médico não parava. Ângelo distraído nas profundezas do decote mal ouvia as recomendações do frenético cirurgião. Foi, por este, quase empurrado para a sala de operações. A generosa funcionária sorria. Dispa-se e deite-se na marquesa. O paciente, de doença alguma, obedeceu deixando as cuecas. Pudor, pensou o frenético. Aliás, às risquinhas brancas e azuis. O sorriso virou riso e o médico fez-lhe sinal para sair. Obedeceu, tapando a cara com a palma da mão. Quando a luz intensa incidiu sobre a marquesa, a asa refulgiu na sua flamejante magnificência. Ligou a câmara de filmar. O relógio marcava as nove horas quando o médico injetou o potente anestésico na carne. Parecendo-lhe ter visto algum movimento no corpo exposto, repetiu a operação. O corpo inerte sossegou-o. Pudera, com esta dose de cavalo. Da câmara vinha um leve ruído de ovos a estrelar. Experimentou a serra cirúrgica higth teck. A funcionar na perfeição. Cortaria, longitudinalmente, um crocodilo ao meio. Observou, demoradamente, o anjo. Um corpo perfeito, andrógino, de pele branca e sem marcas: sem cicatrizes. Foi tentado a retirar-lhe as ridículas cuecas, mas a máquina registadora de imagens reteve-o.
Sem que o cirurgião sonhasse, a anestesia, ou melhor, as anestesias, não tinham tido qualquer efeito. O ente, ainda alado, prestava atenção a tudo sem abrir os olhos. E mesmo assim via tudo. O médico dirigiu-se para a marquesa, inclinou-se sobre o corpo e aplicou a folha da serra na articulação da asa com o corpo. Para seu grande espanto a serra penetrou a articulação como faca morna em manteiga. Mal tinha começado e já a asa jazia no chão brilhante da sala. Estas novas tecnologias são fabulosas, pensou reconfortado. Mais espantado ainda ficou quando constatou que nenhum sangue tinha sido derramado. Cozeu, lentamente, a ferida aberta. Uma ferida rosada sem sangue e aplicou um penso. Desligou a câmara e despiu a bata esverdeada. O relógio registava as nove e vinte da manhã. Nunca tinha levado a cabo uma operação tão rápida. Nem a retirar simples sinais da pele. Isso não o fazia feliz. Lembrou-se então que com a montagem a fazer sempre poderia estender a intervenção para tempos compatíveis com a complexidade da cirurgia. Afinal era uma obra única. Nunca nenhum cientista tal houvera realizado ou sequer imaginado. Estava embrenhado na congeminação destas ideias e já um homem novo se erguia da marquesa. Os lençóis brancos que o envolviam mantinham-se brancos e imaculados. A figura que emergia na manhã inicial parecia um anjo. Branco e esbelto. Leve como as folhas de Outono. Nada, mas mesmo nada, o ligava ao marreco triste que fora antes.
Não, não!, o senhor tem que ficar em repouso e com acompanhamento na clínica. Temos o quarto preparado mesmo aqui ao lado. Clarrisse ficará a acompanhá-lo dia e noite. Pelo menos até eu lhe dar alta. O tempo, que segundo se diz não para, retrocedeu e a decidida e desasada figura pareceu atordoada como quem recebe uma notícia desagradável ou sai de uma forte dose de anestésico e dirigiu-se, de forma arrastada e aparentando dificuldades, para a sala de recobro. O médico relaxou e despediu-se voltando à sala de cirurgia.
A surpreendida funcionária viu surgir sa sala operatória um homem encantador e irresistível, mesmo parecendo combalido. A paixão que já sentia pelo marreco pré operatório disparou, deixando-a sem palavras. Não fosse o apatetado médico aparecer para pôr em funcionamento o tempo parado e teria ficado petrificada. Menina Clarisse, o sr. Ângelo nada tem a pagar. Acompanhe-o até segunda-feira e telefone se houver alguma novidade. A medicamentação está no lugar do costume e registada na ficha pendurada na cabeceira da cama. Boa noite!
Mal o patrão saiu, retomou a iniciativa e dirigiu-se, já corada, ao homemquepareciaumanjo. Este estava sentado na cama alta balouçando as pernas parecendo, digo-vos eu que não tenho nenhum interesse nisso, um anjo. De homem marreco a anjo, vai um fechar de olhos. Um pestanejar, para melhor dizer. Porque há encerramentos de olhos eternos, como bem sabem. O doutor era um profissional excelentíssimo, pensou. Deite-se, deite-se. Ficarei a tomar conta de si até o doutor voltar. Deite-se. E ajeitou-lhe o pijama azul com o emblema da clínica enquanto o ajudava a deitar. Estonteado com o suave perfume que se libertava da mulher, e ante gozando o tempo a sós, deixou-se levar pela competência da zeladora enfermeira e aninhou-se nos lençóis. Fingiu mesmo dormitar.
O quarto era o centro do mundo. O universo, na sua infinitude quieta, girava à sua volta. De mãos dadas, numa união/dispersão tão forte como a das forças eletromagnéticas que conduzem as partículas elementares, enlaçavam os mundos que a si reconheciam como centro de tudo. Num silêncio sem constrangimentos, as coisas tornaram-se iguais e unificadas num plasma indiferenciado a caminho de uma sopa final envolvendo outros princípios. Para além dos afetos e do desejo. Um plasma confortável e morno para além do bem e do mal.
Clarisse adormeceu tombando sobre a elegante figura que enlouquece de prazer no leito de recobro. Recobra de outra vida. As horas passavam sem que se desse pelo passar do tempo. Mas a solidão feliz dos entes vadios que suspendem os dias não dura muito sob pena de atingir a morte. Foi, violentamente, acordada por um telefone que rasgou a calmaria da noite. Era o médico a saber se estava tudo bem. Sim, fique descansado, dorme que nem um anjo. Ótimo. Até amanhã. Até amanhã.
Agora acordada, e vendo que o convalescente hóspede continuava num sono profundo, e que a claridade da madrugada começava a penetrar a penumbra do quarto, aproveitou para descer à rua e comer qualquer coisa.
Cá fora uma névoa pastosa e fria cobria a cidade. Os primeiros, e os últimos, habitantes da madrugada deslocavam-se como autómatos telecomandados por extraterrestres distraídos.
Tomou uma meia de leite e uma torrada enquanto revia mentalmente os vorazes e recentes acontecimentos: a sua nova vida. A paixão transforma-nos. Estar apaixonado é como renascer. Encarar tudo como se fosse a primeira vez. Uma aventura incontrolável sem os ditames do passado. A complexidade do novo comandando a impossibilidade do desejo. Ao encontro das infindáveis e estranhas terras do amor. Era já tarde para regressar ao chão pisado onde as pegadas se sobrepunham marcando o território do conforto e das certezas. Comprou um iogurte com cereais e uma maçã para levar e pagou.
Quando entrou no quarto encontrou a cama vazia. Procurou por toda a clínica e nada. Ninguém. Destroçada e à deriva num mundo novo e desconhecido, desceu à rua e correu por toda a parte se direção definida. Ninguém. Não havia ninguém à vista no novo mundo qua a destruía. O que fazer? Agora sem poder regressar. Sem caminhos para trilhar. Uma mulher louca engolida pela cidade que acordava. A felicidade torna-se num pasto fácil, e fatal, para o horror. Como construir alicerces depois de se ter edificado a nova casa?
Cá fora o nosso homem, o novo homem, caminhava pela longa avenida. Solto e ereto como nunca o tinha feito. Tinha mesmo que ter cuidado para não cair para trás. A elegância no caminhar e na postura atraia os olhares dos transeuntes. Sobretudo das mulheres. O velho casaco assentava-lhe agora como uma luva. Parecia um ator de Bolywood. Era de uma beleza flamejante a tristeza que transportava. E isso era magnético para quem deambulava perdido no mundo que ficava para trás. O que o interessava não era a cidade e os seus ocupantes semiadormecidos. O homem que agora era aspirava ao que nunca seria alcançável e por isso fugia da felicidade. De uma mulher que percorria a cidade montada na leve montada da loucura, levava apenas a saudade. A saudade que também da vida de outrora. Uma vida aos supetões pela inútil irrealidade. Pelos risíveis caminhos do sonho.
Nós que dispomos da narrativa ao sabor do vento. Que criamos o possível a partir do impossível e revelamos apenas o que viabiliza o discurso. Que sujeitamos palavras e encadeamentos sintáticos, tão válidos como outros quaisquer, dominamos apenas o que aconteceu e está a acontecer: o passado e o presente. Na ficção não há devir nem futuro. Por muito pensamento que preceda a pena, é esta que conduz o tempo e a ação. Dito isto, direi, passe a redundância, para terminar a presente, que já vai longa, sempre a pena a conduzir o inconsciente, que o novo e nosso homem repousam agora o corpo metamorfizado num banco de comboio, atravessando a paisagem a uma velocidade estonteante. Comprou bilhete para o primeiro comboio a demandar a estação central. É um clássico: viagem sem destino para fugir ao destino. Deixa para trás tudo o que o tempo havia impregnado no seu ser. Agora, tabula rasa, será um homem à procura de eternidade.
As paisagens desfilam, indefinidas, como fotogramas analógicos montados ao acaso, no seu olhar perdido. Sim agora compreendia a infinita discussão dos homens sobre o sexo dos anjos.
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