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(…) e continuava escavando,
escavando a água que lhe escorria do corpo,
do interior da carne devoluta.
Atravessou a profundidade do princípio
através de árvores e pássaros
que o cumprimentaram com tristeza
estranhando a ousadia do cavador
desaparecendo na hiante cratera,
revelando o dentro onde a luz
varre a caverna essencial
para sempre corrompida. Cá fora
amontoam-se entranhas putrefactas
e repugnantes, instalação tempestiva
abrigando o futuro sanguinolento e breve.
A negritude das aves que disputam os escombros
traduz a poesia que se desprende das vozes,
do corpo escalavrado. (…) e continuou escavando,
escavando o sangue que coagulava na ferida rasgada,
nos socalcos da escuridão que cediam à tristeza
dos citrinos. A lâmina dilacerante faísca
ao encontro dos sedimentos mais sólidos da paixão,
rasgando fraturas na indizível serenidade
dos rochedos fossilizados, desocultando
chagas cicatrizadas no antanho das palavras
ornamentais, esquecidas no interior das faces
labirínticas do corpo.
Argonauta no pus amniótico que envolve
a memória, entranhando-se num mundo
de vísceras sem retorno, esquece a procura
dos primórdios fundadores da complexidade,
dos dias felizes maternais, afagos hipnotizantes.
As forças faltam-lhe por vezes na profundidade
das sombras fazendo-o parar. Repousando
nos escombros flamejantes da viagem.
Os amigos recentes ficaram para trás e a claridade
da superfície é já um ténue fio acariciando
as paredes mornas da solidão.
Recomeças a perfuração dos estratos
mais longínquos com uma violência que desconhecias.
Voam fragmentos estranhos e incandescentes
sulcando a memória incompleta. Sentes uma
inusitada ereção perante as fêmeas expostas
que se te cravam na carne. Há mulheres saindo
das sombras que te saúdam com o sexo húmido,
desafiando os medos acumulados em quartos
sem portas nem janelas, em fragmentos inatingíveis,
arquipélagos no imenso plasma do prazer que te
destrói a caminhada. Uma mulher que fodeste
uma só vez num molhe de uma praia deserta
arrasta uma criança que te olha de soslaio.
Só ingerindo a indigesta carne de cabra velha
poderás comunicar com os espectros
que vão pelo rio em sentido inverso.
Em vão agitas os braços, tentando
tocar-lhes com as pontas dos dedos.
Ultrapassas a cintura do sexo e penetras
um sedimento de lágrimas rasgando a lama
escarlate que emerge da sombra espessa e fria.
Ouvem-se gritos de crianças ansiosas, o vento
cala-se como se a noite se tivesse apoderado
de tudo e não precisasses de continuar a escavar
o que já não entendes como teu. Das vísceras revoltas
e ferventes solta-se um berro de recém-nascido.
O teu caminho chegou ao fim e um gato saltou
para o berço que te acolhe. O choro para enquanto
o felino se enrosca no leito que é também o da tua mãe.
Resta-te, sem possibilidades de regressar aos teus pensamentos,
escalavrar os corpos dos outros.
O espelho não é tão aconchegante, mas revela cambiantes
externos que compensam o rumorejar das entranhas.
MG/VRSA
22/5/2012
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