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Não tinha pensado nisso. A avenida estendia-se, rude e crua, até ao fim do mundo. Alguns candeeiros iluminavam o nevoeiro morno do Levante. As minhas pernas pareciam moles e frouxas, caminhava cambaleando no alcatrão esponjoso. Nunca tinha pensado nisso: bebia para ocultar a timidez.
Àquela hora da madrugada irresponsável, o calor mantinha-se à superfície das coisas. O ar irrespirável alimentava as insónias dos entes há muito retirados nos leitos burgueses. Nos lençóis encharcados de lama pestilenta. O maléfico soprar das aragens desérticas destrambelhava as mentes sóbrias.
Avanço ao encontro da imensidão da noite. A experiência diz-me que no fundo da avenida, junto ao porto, um bar ilumina as trevas. É o último reduto da loucura ambulante antes do Sol misturar tudo na intensa luz do Levante.
Aquele homem que percorre lentamente a borda da Ria é um poeta. Como todos os poetas procura a embriaguez do abismo profundo e inatingível. Generoso e sem retorno. É uma caminhada dolorosa e sem destino que engole o próprio caminhante. Uma autofagia que vai destruindo o sujeito e o objecto. Uma boca hiante a partir da qual o corpo se vira do avesso, desaparecendo nas vísceras tetónicas do inferno emergente. Uma longa batalha entre quem come e é comido, sendo que um e outro são a mesma entidade. Entre o destino e a razão.
Enquanto mija atrás de um contentor de lixo, uma figura mágica espreita por entre os restos nauseabundos. Os excrementos sociais que preencheram as ânsias medíocres da humanidade.
Por deus, é uma mulher!
De olhos muito abertos e uma boca escancarada e vermelha, concupiscente, fita o poeta. Toda ela é desejo e vontade de emergir da putrefação contida.
O poeta sacode a pila e não resiste aos encantos da visão miraculosa. Retira-a cuidadosamente do caixote pestilento e verifica, surpreso, que a mulher é jovem, durinha, leve e bonita. E está nua.
Mãe, telefona-me mãe!, grita na noite incompleta. Tu e eu somos os maiores que as estrelas envolvem. Tu, a melhor mãe que os tempos conheceram e experimentam. Eu, o maior poeta vivo que risca a face do planeta. Telefona-me mãe!, ecoa nas profundas cicatrizes da existência, num rugido lancinante e triste.
Caminha, agora, com a jovem ao colo. Leve como ar de Verão. Leve como algumas palavras que nunca são ditas. A timidez irrompe das entranhas instáveis e, no lento processo de auto-fagia, nunca se sabe se vem de dentro ou de fora. É preciso aplacar-lhe os propósitos misantropos que atropelam a alma.
Ao fundo da longa muralha que defende a aldeia do mar prosélito, tremem as luzes no ar cálido do Levante impositivo. Luzes de um bar que acolhe os restos da noite. Os que rejeitam o conforto das certezas. O possível que sobejou do impossível doloroso e inquieto. O poeta dirige-se, imparável, na direção das luzes de néon. Show me the way to the next… Só tem que bordejar a muralha de pedra que João de Deus Baptista, o mestre dos mestres da pedra, instalou, rigorosamente, entre a brutalidade dos homens e das águas. Entre as casas e a o mar.
Telefona-me mãe! Há palavras que me corroem o pensamento. Animais na cabeça que exorcizo expulsando da mente símbolos e sons que se perpetuam nos abismos impenetráveis e labirínticos. A poesia nasce da morte das palavras incandescentes que me destroem a vida. Que me tornam belo e caótico, imortal e efémero, navegando ao sabor dos elementos que se apropriam dos meus passos e me impedem de chegar à fronteira dos sonhos bloqueados. Onde a planície derrama palavras eternas nas superfícies onduladas da solidão. Há palavras que custam a entender. As mais valiosas resistem ao mais poderoso dos exorcismos. Ao mais esforçado dos hermeneutas. Animais da cabeça enclausurados na eternidade, que me sugam as ideias e arrastam na dimensão dos corpos corruptos. Telefona-me mãe!
A chegada do poeta enamorado e da etérea companheira, animou a já ruidosa clientela do estabelecimento comercial. Sons e olhares de admiração e inveja sacudiram a madrugada final. Camones vermelhos e tatuados transbordando cerveja e riso. Turistas que não conhecem o ruído do Levante que se enrola nas dunas. O empregado, aprumado, gestor de ocasião, não se impressiona e nega a entrada ao casal recém-aparecido. Alega, inapelável, a forma como se apresenta a fêmea que reluz na noite suspensa. A nudez numinosa.
O bar recolhe o refugo que se afunda na obliquidade da cerimónia irreversível, mas mantém a decência de tempos ancestrais. Dos ditames do super ego imperial e besta.
O poeta retira-se cabisbaixo e impotente, sentando-se, timidamente, na muralha protetora. A seu lado a mulher que suporta o peso da recusa. Mais ao lado, só agora repara, está o seu amigo Califa. Trocam olhares cúmplices. É um poeta que nunca escreveu uma palavra. Um mariscador alcoólico e solitário, que sabe cultivar uma amizade. Uma amizade antiga. Um homem que deixou Kenitra, a sua terra natal do outro lado do golfo magrebino, e veio com o Levante até à aldeia de pescadores. Ainda havia cabanas, ainda não havia turistas.
O meu amigo está muito bem acompanhado; foda-se, preciso de uma cerveja, o Califa está mesmo KO, não o posso mandar buscar cerveja; foda-se que gaja boa, com tudo no sítio. Se não fosse do meu amigo, atirava-me já; puta de vida, já não se pode beber uma caneca. Telefona-me mãe! os camones bebem o que querem e um homem da terra nada.
Enquanto o Califa dormita e o poeta arde em timidez, dá-se o clic na história. Às vezes a história só desembucha com um clic e parecia ser o caso desta. O verdadeiro e incontornável clic. Nada do que existe, ou algum dia existirá, é bom ou mau na sua integral constituição.
CLIC:
Um turista é um caçador de troféus. Regressado a casa, a avaliação da viagem afere-se pelo número e qualidade de troféus predados. Ora, ali, naquela muralha de paralelepípedos de calcário, estava instalado um inesperado e apetitoso troféu. Era só disparar. Clic: uma fotografia de bêbado avermelhado e feliz abraçado a uma mulher nua, sensual e leve como a espuma do Levante. A proposta é honesta e irrecusável, boa para todos os outorgantes: uma fotografia de camone com a diva = a uma cerveja.
Meus amigos e friends, é pra já.
Segue-se uma sessão fotográfica sem fim e a timidez do poeta vai desaparecendo na loucura antecipada da felicidade pela exibição dos troféus, num pub qualquer do país de Shakespeare. As cervejas enchem a muralha ao ritmo dos flashes. O Califa, entretanto mais desperto, recusa tocar-lhes. O seu olhar vai-se tornando baço e impenetrável.
Só um poeta, e amigo, pode interpretar um olhar. Levanta-se cambaleante, afastando os predadores, e entrega, generoso, a estrela da noite, nas mãos do amigo.
Para grande tristeza dos clientes e do empregado, arrependido, o mariscador-poeta retira-se rapidamente para casa, envolvendo gentilmente a mulher disponível.
Levantado das águas, o Sol emerge fazendo esquecer a noite. Ao poeta ninguém telefonou.
( Dizem as más línguas, que o narrador não tem dessas, que durante quinze dias ninguém mais viu o magrebino na aldeia. O que é certo, e pode ser garantido por qualquer um, é que da linda mulher que iluminou aquela noite sem par, nunca mais ninguém soube dizer nada.)
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