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Não me digas que as galinhas gostam de queijo?, perguntei incrédulo, mergulhado na areia da praia postiça.
Sim, respondeste, com cara de poucos amigos. E têm preferência por queijo da serra.
Seriam quatro horas da tarde de um dia qualquer e o vento soprava de penente, sem dó. A areia fazia-me cócegas na parte inferior dos tornozelos. Na praia deserta começava a fazer sentir-se um odor a precipício e prossegui o questionário inquisidor: e a que sabem as galinhas comedoras de queijo?
A galinha, naturalmente, respondeu a minha amiga, do outro lado da maré mortiça.
Tinha lógica. Galinha alimentada a milho não sabia a milho, pois não? Mas queijo??!!
Bom. Esqueçamos as galinhas que outros problemas amoro-filosóficos mais prementes se alevantam. Mas queijo?...
Ah, e aquela dos ouriços que não gostam de cães?, perguntei maldosamente.
E com toda a razão, opinou espontaneamente a minha bela e colaborante arqueóloga de sonhos escalavrados. Se os cães gostam de ouriços – gastronomicamente falando, claro – é de todo natural que estes não os apreciem e …
Interrompi a sua rápida e incisiva (diria mesmo canina) argumentação, com não menos veloz e flamejante raciocínio. Mas eu gosto de ti e, até às cinco da tarde como prometido, tu gostas de mim.
Não confundas gastronomia e sobrevivência, com amor e ódio. Replicou sem pestanejar. Eu sobrevivo sem ti, sem amor e sem ódio, até ao fim das marés. Sem religião não existem escravos. O amor e o ódio cativam as consciências obtusas da servidão.
A abrasão arenosa envolvia-me a pele peluda dos milénios. Nos joanetes assexuados convergiam exaustos os fantasmas da perplexidade funesta. Da atmosfera cálida. Reacção dos poros epidérmicos à invasão sedimentar. Na imaginação imensa da maresia, atropelavam-se cães, galinhas, ouriços e sexos. Sexos brandos e apocalípticos, soçobrando de espanto.
O ódio aproximava-se devagar, como era conveniente. Conveniente e imperioso. Na vastidão absoluta dos sentimentos inertes uma gaivota de papelão guinchou na tarde. Da anti-praia sons da aproximação do Levante invernoso. As areias da vida movediça envolviam-me calorosamente e sem mágoa visível. Dizível, pelo menos. O fim da tarde fazia o seu caminho, inexorável.
A minha tia alimentou os felizes galináceos a queijo e nunca se queixou da cor da canja. Mesmo a crosta, que envolvia o caldo milagroso, lhe era meio indiferente. Aproveitava-a para barrar o pão.
O atrito da caneta do tempo soava sulcando o papel da vida. Arrepiava o silencioso tombar do dia. A solidão, brutal e sanguínea, assomou às cinco da tarde de um dia qualquer. Até ao fim das marés.
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