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No dia 25 de Abril, pela manhã, fui ao lançamento de uma primeira pedra.Não uma primeira pedra no sentido bíblico. A de um lar para a "terceira idade". Foi a minha primeira pedra. Pedra pedra, bem entendido.
O acto em mim atraía-me tanto quanto um concerto do António Carreira. Foi a fragilidade da minha mãe ( na tal 3ª idade e dinamizadora do projecto) que me arrancou do generoso leito e me arrastou até ao terreiro onde irá ser implantado o "equipamento social". O evento não contou com a cumplicidade do tempo que se apresentou frio e ventoso. Uma nortada cortante e impiedosa que fustigava os que se apresentavam para presenciar o piedoso acontecimento. Cheguei bastante cedo que a minha mãe estava ansiosa. Embora tenhamos combinado de véspera, já me tinha telefonado temendo a minha crónica irresponsabilidade. Apresentou-se-me de traje de cerimónia com broche e tudo. Eu, como já se calculava, de gangas e casaco de cabedal coçado.. Uns ténis de um dos meus filhos, deslavados e gastos (pareceram até à minha mãe rotos).A senhora não gosta mas já entranhou. E a companhia bastava-lhe. Gozou-a até aos limites da sua tensão arterial, cronicamente já alta. Chegámos ao terreiro poeirento e desolado e já por lá andavam, cabelo ao vento (ralos e esparsos) muitos dos futuros utentes do lar. Trajes de festa, uns aguardando as individualidades, outros dedicados à logística dos comes e bebes pós-discursos, lutando contra o vento que ameaçava arrastar para fora das mesas os mimosos pastéis de bacalhau e outras iguarias apetitosas.
Ai como o menino está tão novo. Está mesmo igualzinho a Sr.. Fernando. Ainda há pouco, estou mesmo a vê-los, andava na brincadeira como mê Zé no ribeiro que pareciam uns patinhos todos enlameados... e a minha mãe babada. A minha gente. Tenho-os no coração sempre e para sempre.
Começam a chegar as individualidades: o presidente da junta, o da câmara e, ano de eleições obriga, os novos candidatos ao município: o delfim do actual ( o que detém o cargo concorre à câmara da capital) e o pretendente da oposição. O padre da freguesia, o presidente da Casa do Povo, os presidentes das freguesias vizinhas e, o mais eloquente e nervoso, o presidente da associação que vai lançar a obra.
Chegam alguns amigos da minha idade. Poucos que na noite anterior houve baile na Casa do Povo e a tertúlia foi longa.
A minha mãe já está na primeira fila em redor do local onde há-de ser colocada a primeira pedra. Numa terra pequena e num município pouco populoso, toda a gente se conhece. As individualidades são todas minhas amigas ou conhecidas. Cruzámo-nos na escola, no futebol ou, pura e simplesmente, encalhámos frequentemente nos caminhos estreitos da paisagem envolvente.
A minha mãe delira com tão íntima relação. Fatos azuis contra ténis "dread", mas ela já nem repara.
Dentro de um cilindro é colocada uma carta com os nomes dos envolvidos mais relevantes no longo processo que vem da ideia até ao presente momento. Carta da memória aos vindouros que um dia abrirão a missiva e honrarão os de antanho.
O padre, tão magro que o vento quase o leva, benze a pedra com o aspersor sagrado. Diz umas coisas sobre as obras dos homens e as obras de Deus. Aproximo-me para ouvi-lo. Foi meu professor de História há 35 anos e quero relembrar essa histórica voz. Desilusão. Já não é a mesma voz. Ou os meus ouvidos já não são os mesmos? No entanto fiquei a saber (que vergonha tão tarde) que benzer é dizer bem. Disse-o o padre. Nunca tinha pensado nisso.
Vai agora pegar na palavra, iniciando as hostilidades, o director da segurança social do Algarve e candidato à câmara pelo partido da oposição. De improviso vai fazendo a cronologia do apoio prestado e, timidamente, faz crer que esse apoio foi "mais relevante" para o bom desenvolvimento que o apoio da câmara. O actual detentor do cargo, dinossauro da política que se alavanca a outro concelho mais "valeroso", regista e sorri. Já vamos ver porque sorri. Não é ele que vai ripostar ao orador inicial. É um homem desinteressado... É a sua vice presidente (e candidata reincidente) que está frente à pedra. Discurso escrito (brincas, não...). As palavras saem duras e o vento açoita com elas o candidato da oposição. Novo nestas contendas, lá vai encaixando como pode. Com dignidade, registe-se. O dinossauro sorri... desinteressado.
Finalmente, momento há muito aguardado, que as barrigas também têm as suas razões que a razão não desconhece, o discurso do presidente da instituiçaõ de solidariedade social que ali se materializa. Individualidade exterior às contendas políticas hodiernas (por ora), balbuciou umas palavras de circunstância a que pouca gente ligou (excepto a minha mãe que foi a principal responsável pela ascensão do orador à presidência, pareceu-me mesmo ver-lhe assomar uma lágrima no canto do olho). Não fora ter-se esquecido do presidente da junta na elencação das personalidades que contribuíram para o sucesso da empreitada e ninguém teria registado qualquer parte do discurso.
Todas as individualidades pegaram, à vez, na colher de pedreiro e afagaram e acariciaram o cimento que colava a primeira pedra à eternidade. Confesso que temi que na vez do meu irmão, uma das individualidades presentes - porventura a mais importante a seguir à minha mãe - as calças se descosessem durante o acto de se baixar para afagar a pedra. De resto, com o seu fato azul escuro às riscas e de cravo vermelho ao peito ( a única individualidade com tal símbolo ao vento) encheu-me de vaidade e orgulho. Quando a mole humana (fosga-se que isto é que é falar. Influência dos distintos oradores?) se trasladou para as mesas convidativas e abandonou a primeira pedra à sua sorte, achei por bem retirar-me. A política é linda. É uma ficção encenada com emoção e empenho onde os actores representam o melhor que sabem e podem.
Deixei a minha mãe a cargo do meu irmão e desloquei-me para o almoço tradicional do 25 de Abril com os meus camaradas. Daqui a nadinha estaremos a entoar amanhãs que cantam e a querer cumprir o 4º e o 5º mês...
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