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Uma Catacumba Caiada

por vítor, em 14.08.06

 

 

 

  Quando o calor se atirou à aldeia, podre e venenoso, o Zé saiu da taberna ziguezagueando.

  Sabia que nunca mais iria enterrar ninguém. Via- se pregado na parede do cemitério rodeado de aranhas que dançavam titubeantes e macabras.

  Contra o que sempre pensara, não morreria velho e foi- se despedir da espanhola com quem dormira as duas últimas noites.

  Àquela hora  os cães dormitavam nas sombras, abanando o rabo à sua passagem.

  O presidente da junta tinha-o prevenido três semanas antes que a profissão de coveiro era ingrata: - o osso é duro de roer. Mas o importante é que há mais marés que marinheiros.

  Em Lisboa, nos tempos de casado, tivera ofícios duros. Mesmo assim sempre pensou que morreria velho. Nem mesmo a separação da família o desesperou, e a vida era vivida com um sorriso interior, de parietal a parietal.

  Porém, o aviso preocupou-o.

  Caminhou junto à parede para aproveitar a sombra dos beirais. Torneou um barco semi desfeito de saudades. No poial da porta da espanhola estava, despreocupado, o marido desta. Despreocupação de corno manso, pensou.

  Atirou-lhe dez tostões. Para a aguardente de figo.

  O canavial murmurava sons de juventude, levemente embalado no sueste. A velha nora espiava por cima do casario árido vindo do deserto.

  Afastou a rede mosquiteira da porta e entrou no escuro antro dos pobres. Fixou os olhos, sem medo, no cristo ameaçador do fundo, e releu o prato azul violeta: " o cabelo que foi loiro e depois se debotou, lembra alguém que tinha oiro e em prata se transformou".

  - Romualda , chamou baixinho.

  Os ladrilhos libertavam uma frescura agradável a alfazema. Entrou no quarto e viu-a estendida na esteira, completamente nua. As dobras da barriga pendiam-lhe até ao chão, subindo e descendo ao ritmo da respiração pesada. Não acordaria mesmo que um tubarão entrasse na ria e comesse metade dos homens que dentro de água esquartejavam os atuns do copejo da madrugada. Ficaria para mais tarde. Muito mais tarde...

  Procurou nos bolsos das calças um cigarro, e foi encontrá-lo num da camisa. Acendeu-o ainda dentro de casa e saiu decidido ladeira acima em direcção do cemitério.

  No caminho entrou na tasca do Marcolino - estrategicamente situada entre os mortos e os vivos - que dormia com a cabeça sobre o balcão. Balcão de amendoeira de amêndoa dura, onde se apoiavam as mais diversas vidas, desde o começo dos séculos.

  Serviu-se a si próprio de medronho. Era a única bebida que, no estio, lhe refrescava as tripas.

  As aranhas começaram a movimentar-se no seu cérebro dando-lhe uma sensação de inesgotável prazer.

  O Marcolino mudou de posição, disse alguma coisa arranhada, e continuou ouvido colado aos sonhos infindáveis do balcão. A venda era impotente perante o calor que se ia instalando sem pagar.

  Mais um medronho e saiu levando consigo a garrafa. Pagaria depois. Muito depois...

   "Medronho puro a bebida do futuro", rótulo sem cor sobressaindo da solidão das ruas escaldantes.

 "Nós ossos que aqui estamos pelos vosso esperamos". Entrou. Dirigiu-se à cova que começara a abrir pela manhã. Ajoelhou-se diante dela murmurando álcool para as entranhas da Terra.

  Sem que desse por isso, da catacumba do General, saiu um esqueleto com galões a condizer, armado de martelo e pregos. Com o queixo aprumado, protuberante, e rodando sobre os calcanhares a cada sepultura, chegou-se ao Zé que flutuava a um palmo do solo. Deu-lhe o braço e foram os dois até ao lado Norte do cemitério. Aí, o esqueleto general, pregou o esqueleto do inferno na parede caiada, peça do puzzle infinito da calmaria.

  As aranhas, agora livres, saíram à rua semeando  panfletos incendiários aos transeuntes.

  Duas árvores, frondosas, coraram de cumplicidade.

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publicado às 23:56



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