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Quando não falam em ti, apodreces.
Os dias passam e ocultas-te
Na pequenez da solidão que ensombra
As palavras indiferentes.
A quem interessa a estrofe sem leitor,
A porta escancarada na parede esburacada?
Lembra-te do tempo sussurrado,
Indiferente, revolvendo a terra húmida
Onde latejam vermes inconfundíveis
Que fecundam as trevas. Ninguém
navega sem conseguir entender as correntes
Que conduzem o devir. Ninguém se
Desconstrói quando o corpo resvala
Na ladeira que se ergue ante ti.
As ladeiras só existem na tua
Cabeça e o que procuras não está
Do outro lado da vida. Está aqui,
Junto às tuas mãos!
A outra margem só existe na penumbra
Do crepúsculo e mesmo assim
Só a acedes enquanto espuma
Evanescente. Espuma que encanta
Os que nunca se encontraram mesmo
Quando habitam vontades semelhantes
E percorrem veredas paralelas. Quando
Os olhares divergem do que realizas e és,
Da esteira difusa que cobre o passado
A que não podes voltar, reages
Como se a dor fosse uma impossibilidade
De regresso aos campos de restolho onde
O sexo convoca a inocência nas contendas
Do susto e do medo.
A ausência transforma-se num colapso de desejo,
Numa inusitada falência da vontade em
Penetrar o silêncio da realidade sarcástica.
O significado do ato envolve o que rejeita
A perplexidade, apodrece no tempo,
Na perdição que naufraga na escuridão e
Responde ao ego ausente.
Debaixo das nuvens moram os que não sabem saltar
Ao eixo nas noites eternas.
MG 14/06/2011
Manuel Almeida e Sousa no Filo Café de Bela Mandil.
O Manuel pediu-me um texto para a revista Mandrágora sobre a perfomance do grupo homónimo, no Filo Café de Bela Mandil. Dificilmente consigo descrever o que vejo. Consigo, sim, escrever sobre o que sinto. Bem escrito ou mal escrito, deixo à apreciação dos leitores. Aliás detesto escrever bem e quem escreve bem. Escrever bem é escrever como Camilo ou Eça. Isso foi fantástico e arte há uns anitos atrás. Hoje escrever é outra coisa. A escrita tem vindo a aproximar-se, cada vez mais, das artes plásticas. Em Portugal, com poucas exceções como o António Lobo Antunes, o José Saramago e o Fernando Esteves Pinto, ainda se escreve como aqueles génios escreviam no século XIX. Alguns pensam que escrevendo sem pontuação, só com minúsculas, utilizando múltiplos narradores e outro truques mínimos, se libertam do legado dos cássicos. O que eu gostaria se um dia escrever seria um texto que se soltasse das peias da ortografia e das grilhetas da gramática. Qualquer coisa como: "sempre as laranjas eu; fomos e tu leite femenino nos campu silêncio!; onde está reflexo uma lápis..." . É como andar nu na cidade em hora de ponta.
Assim, o que escrevi para o Manel e para a Mandrágora foi algo que teve a ver com o vómito das sensações de um transe que foi o privilégio de ver o Manuel, o Bruno Vilão e o Gonçalo Mattos em ação no chalé de Bela Mandil (Pechão); mais uma contribução do José Bivar para a arte do país: numa noite inesquecível. Quem pode escrever sobre um tempo sem tempo, como Camilo?
"Minhas senhoras, arregaçai as fímbrias dos vossos vestidos que vamos atravessa o inferno..."
Mandrágora e a recriação do silêncio
A noite esconde-se nas conversas à volta da mesa. Palavras que rompem o idiossincrático pulsar das criaturas. Que inventam a rebelião dos que escutam a solidão dos crentes. O vinho escarlate das terras do sul conduz a explicação breve das ideias. Lá fora o frio açoita a lassidão do restolho e penetra, lâmina afiada, os interstícios da geometria invariável.
Silêncio!, que a instalação complexa dos ritmos apocalípticos virá breve.
As luzes alteram-se nos rostos que procuram a solidez do nada e as perplexidades da mandrágora avançam ao encontro da poesia oculta. São três os avatares que irrompem da noite escondida: entes rebeldes que se digladiam numa perfomance brutal que arrepia os ossos míopes da multidão. A música, que recria o silêncio, que estabelece o conforto nas almas infiéis, refugia-se no barro cansado da tijoleira superficial. Flui alcançando os pés descalços dos espectros que se bamboleiam na noite. Flui e ergue-se nos corpos em transe, possuídos pelo vento, que iluminam o vazio dos tempos. Num ritual caótico, sexo e morte rastejam aspergindo alcalóides venenosos nos argonautas que se agigantam na proa do navio.
A Bela Mandil exorciza a mulher virgem que um dia pariu o maléfico e exulta aos aplausos ululantes da comunidade dos que não conhecem a paz. É ela que nos acolhe nas entranhas sanguinolentas e abjectas. As sementes da mandrágora a emprenharão de sonho e magia. Ao fim da noite, rasgado o ventre dilatado, vomitará os que cumprirão o impossível desejo da liberdade.
A hierofânica vontade, bradam as comadres.
Escarificas o restolho cansado
que me cobre a pele
revolves a carne superficial
onde a dor se aloja confundindo
os impulsos impenetráveis
da morte
Os sulcos que rasgas
na superfície instável (ainda
vegetação primitiva) impedem
o regresso da conversa concupiscência
Escarificas o restolho
preparando o corpo para o ódio
discreto da amplexa plenitude
deriva obtusa do sexo
inquieto.
Primeiro ato neste início de ano diluviano.O caminho faz-se caminhando e em janeiro os pés far-se-ão desenhar nas lamas fecundas do restolho agonizante. A vida irrompe onde a morte alimentou os campos de ausência e asperidade. Os dias de março virão e batizaremos a terra de luz e cor. Siga a ação que comando eu. A continuidade é uma mal dita palavra nas noites que introduzem a perenidade das coisas. Das coisas que precedem o silêncio.
Momento alto na Quinta. O Solstício de Verão.Ceifa, debulha, enfardamento. E o mais importante de tudo: a renovação do restolho por onde arrasto os pés cansados e a mente convulsa.
Ouço-a. Geme ao longe através do restolho que morde os tornozelos. Vem ao encontro dos dias parados.A minha guitarra conhece os meus dedos perros. Os meus amigos sabem que ela cansou de me consolar. Enquanto os filhos cresciam, adormecia-os nas noites longas de Inverno. Quando as meninges se agitavam nas convulsões da adolescência, encheu o meu coração - os nossos corações - , de orgasmos avulso. Agora jaz encostada à coluna do átrio sem vida. É imensa a solidão do que resta. Das vidas ceifadas precocemente. David Carradine apareceu hoje. Amanhã será o dia de outros que não cabem na vida e adormecem nas inconstantes ondulações do cereal que espera. Que consome o húmus que a penumbra esconde. Os cadáveres antigos não distinguem a carne que ainda palpita, mas não sabe que o futuro resvala sempre que os dias se atropelam nas madrugadas silenciosas, das memórias que rastejam nos milénios que soçobram. Os velhos e os novos divergem apenas na rigidez da podridão que fermenta.
Enquanto vou escarificando o restolho antigo encontro-me com gente diversa. Hoje foi o maléfico que rasgava as raízes do cereal ao meu encontro. A trajectória não era arbitrária. Era a mim que queria chegar. Deixei-o aproximar-se como se de nada me tivesse sido possível descortinar. As cicatrizes que sulcávamos aproximaram-se perigosamente e encarei-o corajosamente. O que te leva a roçares os meus sentimentos desprezíveis, atirei à queima-pele. O que ouso é o impossível. É o que não quero nem posso desejar. A ti que ninguém possui nem qualquer dia possuirá. A quem nunca os deuses revelarão compaixão. A ti só pedirei uma palavra que me minimize a curiosidade que fere como brasa a alma que perdi algures. Deixa-me tocar nos sonhos que a penumbra obscurece e inebria. Quantos são os dias que levas escarificando o que resta? Que penas cumpres na imensidão dos elementos, na atómica imprecisão das palavras?
Recuei até poder não. E de longe, protegido pela incontornável panóplia de seres inexactos, dei a resposta que o tempo daria: vem sem medo do devir. Nem deus nem os demónios me entendem. A longevidade da esperança encontrará, um dia, sem espaço nas mentes envoltas em expressões que se contendem na noite, as alvas procissões dos indivíduos sem amor. Escarificaremos as plantas que sobejam da morte anunciada. De onde se levantarão os que alimentam a beleza e o encantamento.
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