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Um silêncio incomum

por vítor, em 29.06.18


Havia um silêncio incomum na casa do poeta. Uma casa pequena, quase sem móveis. Branca por fora, amarela por dentro. Lá dentro, os livros ocupavam o espaço deixado livre pela vida do poeta. Que era quase todo. Vivia na casa, mas nunca escrevia na casa. Escrevia sempre no café. Sempre no mesmo café. No café central da praça central da pequena vila.
Sentava-se à mesa, quase sempre a mesma, e olhava a rua e as pessoas que passavam e os cães que deambulavam sem sentido algum, aparentemente. As árvores e os pássaros. Olhava tudo longamente e depois escrevia. Longamente. Olhava e escrevia, sempre nesta ordem. Se olhava depois de escrever, era para escrever depois deste último olhar. Nunca saltava olhares. Nem escritas. Uma ordem que lhe ordenava o pensamento e fazia organizar a própria vida. 
Tomava sempre o mesmo: um café e um pastel de feijão, no início da manhã; um galão e uma torrada, no início da tarde.
O dono do café e os empregados eram os seus únicos amigos. Trocavam as palavras indispensáveis para cada situação e sorriam às vezes. Poucas vezes. O jornal, a televisão, o tempo, algum cliente atípico regiam a conversa.
Quando o verão chegava e a esplanada se enchia de gente nova, nova em relação ao lugar porque de idades era muito diversa, alegre e risonha, vinda das grandes cidades, fixava gestos, movimentos dos membros, visíveis, claro, esgares e tiques. Mas o que mais gostava era de se fixar nas bocas que falavam e riam e silenciavam. Era um gozo: lábios, dentes, línguas, comissuras sincronizadas na comunicação sem som. Por pudor, retirava os olhos sempre que o seu olhar se cruzava com outros olhos. Apanhado em flagrante delito, escondia os olhos nas palavras sobre a mesa. Os dias quentes eram dias de trabalho intenso e penoso.
Quando o Sol desaparecia atrás do bairro e a luz esmorecia, despedia-se dos amigos de todos os dias e regressava à sua pequena casa quase sem móveis. Todos os dias os mesmos dias. Todos os dias novas palavras.
Uma tarde, em que se fixara nos lábios vermelhos e carnudos de uma mulher, que achou bonita, palavrosa e de fácil gargalhar, falando sem parar com um homem sombrio, na esplanada quente, os olhos da mulher pousaram, momentaneamente, nos seus. Não conseguiu retirar os olhos a tempo, e a mulher sorriu-lhe. Ruboresceu abundantemente e, nesse, dia, regressou a casa mais cedo.
Sentado num banco de pau a uma minúscula mesa de metal, escreveu um longo texto de amor.
PS1 – Nós, que nada podemos e nada queremos anunciar, suspeitamos que o longo texto, iniciado naquele cair de tarde, foi o preambulo de um romance como nunca ninguém tinha escrito;
PA2 – O poeta que nunca tinha publicado obteve, e isto é factual, um retumbante sucesso com o seu romance, publicado por numa das mais prestigiadas editoras da nação.Nesse ano, abandonando a pequena casa branca, o café da cidade de província e os amigos de sempre, percorreu em triunfo o habitual circuito de festivais literários levado em ombros por pares e leitores em geral.
Monte Gordo, 26-6-2018

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publicado às 16:24

 

Ser editor de um poeta é complicado. Ser editor e amigo de um poeta bêbado, decadente e irresponsável é o inferno. Um inferno fascinante, mas um inferno. O meu amigo Rui Dias Simão é um dos maiores poetas portugueses vivos. No entanto parece constantemente querer desmentir-me: deixar de estar vivo.

Hoje tínhamos combinado ir ao lançamento do livro do Fernando Esteves Pinto, amigo comum, à Biblioteca Municipal de Olhão. Aproveitaríamos para distribuir a alguns amigos o último livro do Rui e das edições CATIVA, Poemas do Banco de Trás. Cheguei a sua casa, kantianamente, à hora combinada. Depois de muito insistir com a campainha, resolvi telefonar-lhe. Atendeu, com uma voz arrastada de bebedeira de três dias, da praia." É pá desculpa lá mas estou aqui na praia com um grupo de trissexuais".

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publicado às 00:38

uma mulher disponível

por vítor, em 07.07.10

 

Não tinha pensado nisso. A avenida estendia-se, rude e crua, até ao fim do mundo. Alguns candeeiros iluminavam o nevoeiro morno do Levante. As minhas pernas pareciam moles e frouxas, caminhava cambaleando no alcatrão esponjoso. Nunca tinha pensado nisso: bebia para ocultar a timidez.

Àquela hora da madrugada irresponsável, o calor mantinha-se à superfície das coisas. O ar irrespirável alimentava as insónias dos entes há muito retirados nos leitos burgueses. Nos lençóis encharcados de lama pestilenta. O maléfico soprar das aragens desérticas destrambelhava as mentes sóbrias.

Avanço ao encontro da imensidão da noite. A experiência diz-me que no fundo da avenida, junto ao porto, um bar ilumina as trevas. É o último reduto da loucura ambulante antes do Sol misturar tudo na intensa luz do Levante.

Aquele homem que percorre lentamente a borda da Ria é um poeta. Como todos os poetas procura a embriaguez do abismo profundo e inatingível. Generoso e sem retorno. É uma caminhada dolorosa e sem destino que engole o próprio caminhante. Uma autofagia que vai destruindo o sujeito e o objecto. Uma boca hiante a partir da qual o corpo se vira do avesso, desaparecendo nas vísceras  tetónicas  do inferno emergente. Uma longa batalha entre quem come e é comido, sendo que um e outro são a mesma entidade. Entre o destino e a razão.

Enquanto mija atrás de um contentor de lixo, uma figura mágica espreita por entre os restos nauseabundos. Os excrementos sociais que preencheram as ânsias medíocres da humanidade.

Por deus, é uma mulher!

De olhos muito abertos e uma boca escancarada e vermelha, concupiscente, fita o poeta. Toda ela é desejo e vontade de emergir da putrefação contida.

O poeta sacode a pila e não resiste aos encantos da visão miraculosa. Retira-a cuidadosamente do caixote pestilento e verifica, surpreso, que a mulher é jovem, durinha, leve e bonita. E está nua.

Mãe, telefona-me mãe!, grita na noite incompleta. Tu e eu somos os maiores que as estrelas envolvem. Tu, a melhor mãe que os tempos conheceram e experimentam. Eu, o maior poeta vivo que risca a face do planeta. Telefona-me mãe!, ecoa nas profundas cicatrizes da existência, num rugido lancinante e triste.

Caminha, agora, com a jovem ao colo. Leve como ar de Verão. Leve como algumas palavras que nunca são ditas. A timidez irrompe das entranhas instáveis e, no lento processo de  auto-fagia, nunca se sabe se vem de dentro ou de fora. É preciso aplacar-lhe os propósitos misantropos que atropelam a alma.

 

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publicado às 17:01

Domador de Sonhos

por vítor, em 11.05.10

Recomendar a revista é como uma empresa produtora de escovas de dentes recomendar a utilização de uma escova por dia...

 

Paulo Serra

 

Mas vale a pena pelos que não vendem escovas.

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publicado às 00:01

Poemas do Banco de Trás

por vítor, em 19.12.09

O novo livro do poeta Rui Dias Simão já borbulha, ígneo, nas rotativas do tempo próximo. Poemas do Banco de Trás, assim se nomeará o dito (so?), sairá (saltará)  para a luz dos dias nos alvores de 2010. A editora, a de sempre. A que existe para o editar (e celebrar:) Edições Cativa.

 

Só para  vos deixar hiantes de perplexidade, aqui vai um cheirinho daquele que irá ser, seguramente, o grande acontecimento literário nacional do ano que vem.

 

COMPREI UNS SAPATOS NOVOS

 
 
                                   Não sei como nem porquê mas regresso

                                   assiduamente à derriça que me envolve

                                   o corpo, este corpo de lama, que sempre

                                   fecha as portas ao silêncio vivo.

                                   Não sei como nem porquê, entrei numa

                                   casa e trouxe uns novos sapatos novos.

 

                                   Este grito lunissolar que me apaga

                                   os olhos, resmunga nos espaços entreabertos

                                   e moribunda o caminho que adivinharia

                                   a simplicidade interior.

 

                                   Não sei ainda dizer adeus às flores mortas,

                                   aos rios apagados, às veredas cansadas,

                                   aos labirínticos dizeres das pessoas

                                   dos outros.

                                   Mas existe, existe algum lume

                                   para dizer mais do que esta página

                                   riscada pelo avançar da noite, quase

                                   rosnando para a quimera da falta

                                   dos espaços planetários

                                   de mim?
 

                                   Não sei como nem porquê mas

                                   regresso de muito em vez à sombra

                                   dos lugares que me apagam a pele.

 

                                   Onde estás tu, ó amplexo fantástico

                                   das vozes luminosas - tal qual -

                                   pois não sei como nem porquê mas

                                   já se percebe o estiolamento prematuro

                                   deste animal num fogo diurno 

                                   dos seus aparentes dias azuis.

 

                                   Comprei uns sapatos novos.

 
 Rui Dias Simão

 

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publicado às 14:45

serviço mais que público

por vítor, em 18.11.09

António Aleixo

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publicado às 23:56

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publicado às 23:09

os animais da cabeça (cena I)

por vítor, em 15.02.09

 

 

 

 

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publicado às 23:12

 

Começo a escrever a palavra que me despe
do hálito da meia-noite deste frio
(acanhado sem mãos)
entre outras coisas de ver apenas poucas vezes...
Começo a escrever uma lua sonora dentro do peito
agora peneirada das abrangentes fuligens
ao acender-se um lume vivo quando te aproximas
estranhamente coadunável...
Vens?...
Grito caladamente para a noite
para a multicor indecência do escuro
mas não direi desta noite sua sombra
de meu ego pior
(Não começo a escrever)

 

 

Rui Dias Simão - Os Animais da Cabeça

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publicado às 15:32

4 Águas na cidade

por vítor, em 10.12.08

Sexta- Feira lá subirei, com muito custo, à cidade. Dever de editor.  Só por isso abandono o meu sagrado  eremitério. E mesmo assim, até ver...

 

 

Apareçam!

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publicado às 21:09


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