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E diz, entre outras coisas muito interessantes, o grande Miguel Real no prefácio da obra: "...e a grande novidade temática e estilística do fantástico sem terror e muito amor do anjo que procura ser homem, descendo às profundezas minéricas do Hades para depois, já sem a impeditiva asa celestial, se tornar definitivamente “homem à procura da eternidade” (“O amor é uma fuga sem fim”, de Vítor Gil Cardeira, indubitavelmente uma das melhores narrativas desta Antologia) – o conjunto destes contos evidencia um novo tratamento do tempo e da actualidade quotidiana que se pode sintetizar na conhecida frase de José Saramago “o tempo é todo um”."
De onde vens, se o outono passou e não podes mais brincar aos meninos? O tempo foge-nos quando tentamos abraçá-lo e entendê-lo. Como Santo Agostinho, sei o que é o tempo mas ao tentar explicá-lo, foge-me por entre os dedos como areia. Ainda ontem, corria pela praia como se não houvesse futuro. O vento fazendo ondular os cabelos que se derramavam até às costas. Os meus pais queriam que fosse menina. A primeira fotografia tirada nos Estúdios de Fotografia Andrade, junto ao mercado das verduras, mostra-me de vestidinho branco e um longo cabelo negro atado por cima da cabeça. Um totó, parece-me. Já me sentava sozinho, e por isso já devo ter um ano. Era mais eu que eu.
Depois, depois tornei-me num rapazinho solitário que gostava de chuva. Quando o cheiro da terra aspergia o ar às primeiras chuvadas do outono, gostava de passear descalço recebendo as quentes e grossas pingas no rosto. Coitado. Faz tanta pena, diziam em surdina os aldeãos com sinceridade. Ninguém deseja mal a uma criança. A minha mãe não queria saber de excentricidades. Muito menos no seio da família. A vassoura trabalhava em funções estranhas ao seu destino. Nada me demovia. A chuva que me escorria pelo corpo era a euforia que me faltava para as outras coisas que, supostamente, deviam ser do interesse das crianças. Cresci à chuva. Um dia, a minha mãe passou-se e passei a interessar-me mais pelo verão… tinha ido de comboio para Tavira. Chovia lá fora. Nariz colado ao vidro da carruagem que corria pela paisagem que não me interessava. Só a obliquidade da água que riscava o vidro sujo da janela. Desembarquei no apeadeiro da Porta Nova e pus-me a caminho de casa. Cinco quilómetros até casa sob as nuvens generosas. Nas valetas corriam riachos que desembocariam em ribeiras que levariam a chuva ao mar. Ao mar próximo que sempre me acompanhou. Até ao fim.
Quando passei a amar o verão, descobri as raparigas. Quando passei a amar as raparigas, descobri os livros. E quando os livros entraram na minha vida, o tempo passou a funcionar de uma outra maneira. O que é o tempo? Um rio que corre do passado, atravessa o presente e perde-se, ao longe, fora da vista, no futuro que ninguém deseja. Todos sabemos que um dia irá desaguar no mais incompreensível oceano, o futuro do futuro, a noite mais escura de todas, as trevas mais escuras das trevas: a morte. Agora, o tempo deixou de ser linear, e o antes confunde-se com o depois, que se confundem com o agora e mesmo com o que nunca aconteceu ou acontecerá. Passei a viver em mundos que se cruzam e entrecruzam, mundos que me prendem e arrastam, e amalgamam, e confundem, me transportam para onde não sei se poderei ir, para onde vou sem saber se fico, como folhas num dia ventoso de outono.
Sem peias de olheiros, editoras, livrarias, críticos, amigos e outros possíveis censores, aqui está ele rasgando a planície. Sai um bocadito caro (pode-se sempre descarregar em PDF por 1 €), mas vale a pena. E nem é preciso sair de casa...
A obra tem a chancela das "edições Cativa" que promete, para sossegar consciências mais sensíveis, publicar brevemente outro livrito, agora de poesia, seguindo os canones tradicionais. Agora neste, depois de preparar a semente, semear, acarinhar, colher e ir ao mercado vender, quem manda sou eu!...
Contra, sem ofender, o canone; todas as páginas têm número (todas as páginas têm o mesmo valor), com cores diferentes da capa para a contracapa e lombada, sem a referência à editora na capa; este é um livro desalinhado e assombroso. Um livro livre!
Contos, alegorias, aforismos, pensamentos. Um livro que faz a ponte com o anterior livro do autor, Transeuntes, e que escava ainda mais no corpo e na alma dos que, como as sombras, se ocultam na noite...
Mais uma página do romance sem fim. "Últimos".
Há um tempo para tudo. E tudo poderá ser o mesmo que nada. O tempo funde o tudo numa amálgama disforme e primordial. A memória revolve o tempo tentando reconstruir uma narrativa linear e cronológica, partindo da ausência assume a postura de um construtor de mecanismos coerentes que sustentem uma moral para o indivíduo se poder encaixar no coletivo que o arrasta e sufoca nos irrefutáveis labirintos da verdade. O tempo e a verdade, conceitos que se sobrepõem, coexistem na imensa pradaria das falsidades. Se os outros nos convencem que a vida é um fluir de eventos numeráveis e distintos no tempo, o melhor seria deixar de representar o papel que o inconsciente e o determinismo social nos impingem e conduzem pelo infinito que nos enforma. O esquecimento trará sossego e renascimento. O empecilho para este desiderato é a sedimentação dos destroços dispersos no fundo da memória. Quando adormecidos parecem inertes e inférteis, desaparecem sem rasto nos confins da memória. Quando emergem dos estratos pesados, profundos, impulsionados por estímulos incontroláveis e selvagens, rasgando o esquecimento e emergindo à superfície, manipulam a vontade e impõem condutas irracionais e bruscas que nos desenham bailados irracionais e projectam quais sombras teatrais no pano de fundo que se move nas paisagens irreais das traseiras da existência. Não entender os humores dos outros causa desconforto e ansiedade, fecha-nos sobre nós próprios, colapso brutal que nos esmaga. Não entender o que de nós se desprende sem controlo, que aspergimos nas histórias dos outros, pode ser, nos primeiros tempos, confortável por nos revelar a fragilidade dos que se sentem metralhados pela incandescente energia que se liberta; mas, no médio e longo prazo, o seu poder destrutivo levar-nos-á a desistir do que julgávamos ser o caminho dos nossos sonhos. A desilusão perante o enfrentamento com o que de nós é mais visceral e verdadeiro, poder-nos-á fazer soçobrar e desistir de tudo o que, até aqui, construíramos. Conhecermo-nos é destruirmo-nos.
Só o esquecimento nos levará até lugares mais próximos da realidade e, por conseguinte, à vida. Quanto mais escavas em ti para extrair das trevas de ti próprio os fluídos que pensas que irão renovar-te, mais perto caminharás do precipício. E por muito gozo que as vertigens do abismo, do fim, te anunciem tempos de volúpia, de desafio e prazer, a morte ronda os teus passos e o sofrimento apodera-se do teu corpo manipulando o futuro. Manipulando o que pensavas ser a liberdade. E ninguém será mais limitador do livre arbítrio do que tu. O mais difícil será sempre contornar a memória. A vassoura do esquecimento nunca atingirá os recantos mais sombrios de antanho, o que resta impedirá o prosseguimento do caminho ao encontro de ti, as aprendizagens que julgavas libertadoras são, afinal, peias que te castram os tempos que terás ainda que percorrer.
Na rua, uma aragem fresca varria as vielas antigas, os transeuntes que as ousavam sulcar nos primórdios da noite derradeira. Como navalha riscando a pedra. O alcatrão amarelecia à luz fosca dos candeeiros generosos, acolhendo as sombras no vazio da viagem. Atravessamos o Largo da Misericórdia e dirigimo-nos, autómatos na noite incompleta, para o tasco da memória antiga. O Estádio estava, àquela hora incomum, com dois ou três clientes dispersos pelas mesas de sempre. Dispersos pela vida de nunca. Bebemos dois medronhos ao balcão e zarpamos, regressamos à luz que amarelece. Pouco faláramos até aqui. Nem uma palavra sobre a tragédia que nos levara um ao outro. Ao reconfortável silêncio dos dias de antanho.
Penetramos no Bairro Alto à antiga. Como o fizéramos sempre. O álcool a latejar nos pensamentos. Felizes e ausentes da realidade. Com a certeza de que não encontraríamos ninguém. Ninguém conhecido como nos tempos da Faculdade. Nesses tempo gloriosos, sobretudo aos sábados, nas ruas, nos bares, nas discotecas, nas tascas, a noite era um templo onde os amigos festejavam a juventude e a loucura. Tropeçávamos em gente conhecida a cada esquina, a cada soluço do tempo. Escorriam as horas em conversas intermináveis, abraços e risos interrompiam a noite e estabeleciam ritos e rituais de aproximação à eternidade. Éramos infinitos e sentíamos o todo como partículas integrantes da imensidão do cosmos. Nas noites intermináveis fortaleciam-se laços de amizade para sempre, procurávamo-nos ansiosamente. A nós e ao outro para sedimentar a identidade do futuro. O sexo era um pretexto para amar. Nada se interpunha entre a alegria e a tristeza. Nestes tempos pré SIDA, a sexualidade impunha os ritmos à vida e a efemeridade dos sentimentos parecia não contender com a força de ir ao encontro das realidades por inventar. Sex and drogs and rock n rol. O que não entendíamos era o que nos moldava a sagacidade da rebeldia. Até ao fim das madrugadas, as dúvidas e os impossíveis fundiam-se numa massa fluída e difusa morna e adocicada, qual sopa genética inicial, penetrando os corpos enlameados e sem fronteiras. Noites paralelas ao mundo que bramia lá fora, enquanto o resto, que era maior do que o todo, medrava silenciosamente nos interstícios do dever. A dança. Ah! A dança! Expulsava os demónios e os deuses e, contaminando o desassossego do conhecido e previsível, fazia emergir do nada um novo sagrado a cada palavra. A cada gesto. O gesto que veio, ainda antes, do verbo. Hierofanias volúveis e sincréticas recriando a formação do mundo. O mundo em si mesmo, uno e diverso como o vazio das tempestades. Todos éramos deuses e não sabíamos. O que para trás ficava, para trás sedimentava nas profundezas dos socalcos do esquecimento. A música amparava o que não tinha sustentabilidade, era a continuidade do nós. Proibido proibir, façam amor não a guerra, no nukes, sea sun and sex, amor livre, maios e depois abris. Um plasma majestoso inebriando as valetas nauseabundas da sociedade, as paredes sensíveis da cultura revelada e infecta.
Agora, desconhecidos num mundo estranho, penetramos o tempo injetando de melancolia a noite. Libertos pelo álcool e pela dor – pelo reverberar dos tremores da alma -, avançamos pelo silêncio do passado. Dos muros antigos, da cal escalavrada, da argamassa exausta deslizam monstros tenebrosos, figuras emergentes das sombras, dos desfiladeiros inóspitos do amor e do ódio, da raiva, envolvendo os transeuntes e conduzindo os seus passos. Arrastando-os na nebulosidade da luz noturna. Ninguém escapará aos demónios da noite, as consciências rastejantes avançarão na lama do devir, sinuosas e uivantes, as cavernas hiantes abocanharão os incautos e os crentes: as peripécias que o sonho comporta se a agonia refrear os impulsos do coração contrafeito. Viajamos no passado, percorrendo o futuro por cumprir. As memórias são, agora, correntes ascendentes ao encontro do delírio. Disforme, enleia factos e fantasias.Tudo não passará de uma construção de realidades pré-cartesianas. Nada existe para lá do sonho. Voltamos atrás, ou melhor, tentamos voltar atrás, percorrendo caminhos de antanho. Pisados por outros pés desenhando as mesmas pegadas no pó rarefeito. Mas o que procuramos não nos espera onde seria expectável. Há locais que desapareceram na voraz fabricação do tempo. Outros, julgando vencer a compressão do que existiu no condomínio de mentes paralelas, ainda exibem vestígios do passado entranhado no esquecimento. A nossa demanda confunde-se com uma arqueologia dos sonhos, uma procura no infinito da frase. Por cada socalco que atinges, novo abismo se abre. O nevoeiro que vem e tudo cobre, faz-te voltar atrás. Não entendes um degrau quando a escada se estende pela lonjura da memória, sem pontos de referência onde te apoies. Se fosse possível atravessar a densidade das memórias, os destroços espalhados pelo caminho, constataríamos que o mundo conhecido de uma vida contém todo o passado da humanidade, sendo que esse passado seria, sem dúvida nenhuma, o cosmos que tudo comporta e manipula.
Entramos no Arroz Doce.
De onde vens, se o outono passou e não podes mais brincar aos meninos? O tempo foge-nos quando tentamos abraçá-lo e entendê-lo. Como Santo Agostinho, sei o que é o tempo mas ao tentar explicá-lo, foge-me por entre os dedos como areia. Ainda ontem, corria pela praia como se não houvesse futuro. O vento fazendo ondular os cabelos que se derramavam até às costas. Os meus pais queriam que fosse menina. A primeira fotografia tirada nos Estúdios de Fotografia Andrade, junto ao mercado das verduras, mostra-me de vestidinho branco com um longo cabelo negro atado por cima da cabeça. Um totó, parece-me. Já me sentava sozinho, e por isso já devo ter um ano. Era mais eu que eu.
Depois, depois tornei-me num rapazinho solitário que gostava de chuva. Quando o cheiro da terra aspergia o ar às primeiras chuvadas do outono, gostava de passear descalço recebendo as quentes e grossas pingas no rosto. Coitado. Faz tanta pena, diziam em surdina os aldeãos com sinceridade. Ninguém deseja mal a uma criança. A minha mãe não queria saber de excentricidades. Muito menos no seio da família. A vassoura trabalhava em funções estranhas ao seu destino. Nada me demovia. A chuva que me escorria pelo corpo era a euforia que me faltava para as outras coisas que, supostamente, deviam ser do interesse das crianças. Cresci à chuva. Um dia, a minha mãe passou-se e passei a interessar-me mais pelo verão… tinha ido de comboio para Tavira. Chovia lá fora. Nariz colado ao vidro da carruagem que corria pela paisagem que não me interessava. Só a obliquidade da água que riscava o vidro sujo da janela. Desembarquei no apeadeiro da Porta Nova e pus-me a caminho de casa. Cinco quilómetros até casa sob as nuvens generosas. Nas valetas corriam riachos que desembocariam em ribeiras que levariam a chuva ao mar. Ao mar próximo que sempre me acompanhou. Até ao fim.
Quando passei a amar o verão, descobri as raparigas. Quando passei a amar as raparigas, descobri os livros. E quando os livros entraram na minha vida, o tempo passou a funcionar de uma outra maneira. O que é o tempo? Um rio que corre do passado, atravessa o presente e perde-se, ao longe, fora da vista, no futuro que ninguém deseja. Todos sabemos que um dia irá desaguar no mais incompreensível oceano, o futuro do futuro, a noite mais escura de todas, as trevas mais escuras das trevas: a morte. Agora, o tempo deixou de ser linear, e o antes confunde-se com o depois, que se confundem com o agora e mesmo com o que nunca aconteceu ou acontecerá. Passei a viver em mundos que se cruzam e entrecruzam, mundos que me prendem e arrastam, e amalgamam, e confundem, me transportam para onde não sei se poderei ir, para onde vou sem saber se fico, como folhas num dia ventoso de outono.
"Saímos já a noite se prepara para deixar a cena e a abóbada celeste resplandece estrelada. A chuva acompanhou a noite e com ela voltará. Outras vezes. Sempre. Sempre para nos aconselhar. Juntas ou separadas, para confortar a nostalgia. Bandos de gaivotas guincham no crepúsculo seguindo o rasto das traineiras que regressam da faina. Amanhecia com a luminosidade dos dias que procedem a chuva. Ainda havia luz no Texas. Penetramos na penumbra fosca da casa. Nat King Cole e a filha, Natalie, amparam o único casal que dança no centro da pista. Toda a luz lhes pertence. E a música. Unforgettable. Quase não se mexem. O homem, velho sem idade, sobrecasaca até aos joelhos, olhos cerrados, repousa os lábios, adivinham-se baços, num seio desnudo da companheira, jovem como o dia. (Rosa incandescente iluminado a noite.) Regresso ao amojo materno. Dançam como se o tempo se tivesse esgotado e esperassem outro combustível que o pusesse em marcha para continuar a vida de todos os dias. Desse vida à pesada engrenagem do devir. A realidade impositiva.
Vendo-nos no hall de entrada, um empregado sonolento explica-nos que espera o fim da dança para fechar a casa. O homem é cliente antigo e a cliente antigo nada se nega. Saímos surpreendidos com a claridade da madrugada. O empregado diligente presenteou-nos com duas cervejas. Caminhamos pela Ribeira das Naus e acabamos a noite, e as cervejas, no Cais das Colunas.
O Sol, erguendo-se na lezíria, incendeia o Mar da Palha. De ouro e bronze. Será a última vez que nos vemos. A distopia vencerá a eternidade. Para sempre restarão os sorrisos cúmplices varrendo a alegria de viver. Não haverá mais tempo para reencontrar o que é surpreendente sem causar espanto. O espanto nunca existiu. É apenas um rumorejar na noite dos tempos que contempla o cenário dos malditos aprendizes de ilusões. Agora, é tempo de recuperar os dias votados às aprendizagens inúteis. Deitar fora o que não marcou o corpo, sinais inscritos no que mais importava. Para isso, viver será o derradeiro desembarque na música celestial. Nas abóbadas do mal. No mundo regido pela embriaguez da tempestade. Colapso marcando o final do ciclo que nos trouxe até aqui. É já na eternidade do silêncio que caminhamos, costas com costas, quando os nossos passos se afastam. Se afastam de nós. Numa eternidade que é o reverso de toda a eternidade.
"últimos"
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Na rua, uma aragem fresca varria as ruas antigas, os transeuntes que as ousavam sulcar nos primórdios da noite derradeira. Como navalha riscando a pedra. O alcatrão amarelecia à luz fosca dos candeeiros generosos, acolhendo as sombras no vazio da viagem. Atravessamos o Largo da Misericórdia e dirigimo-nos, autómatos na noite incompleta, para o tasco da memória antiga. O Estádio estava, àquela hora incomum, com dois ou três clientes dispersos pelas mesas de sempre. Dispersos pela vida de nunca. Bebemos dois medronhos ao balão e zarpamos, regressamos à luz que amarelece. Pouco faláramos até aqui. Nem uma palavra sobre a tragédia que nos levara um ao outro. Ao reconfortável silêncio dos dias de antanho.
Penetramos no Bairro Alto à antiga. Como o fizéramos sempre. O álcool a latejar nos pensamentos. Felizes e ausentes da realidade. Com a certeza de que não encontraríamos ninguém. Ninguém conhecido como nos tempos da Faculdade. Nesses tempo gloriosos, sobretudo aos sábados, nas ruas, nos bares, nas discotecas, nas tascas, a noite era um templo onde os amigos festejavam a juventude e a loucura. Tropeçávamos em gente conhecida a cada esquina, a cada soluço do tempo. Escorriam as horas em conversas intermináveis, abraços e risos interrompiam a noite e estabeleciam ritos e rituais de aproximação à eternidade. Éramos infinitos e sentíamos o todo como partículas integrantes da imensidão do cosmos. Nas noites intermináveis fortaleciam-se laços de amizade para sempre, procurávamo-nos ansiosamente. A nós e ao outro para sedimentar a identidade do futuro. O sexo era um pretexto para amar. Nada se interpunha entre a alegria e a tristeza. Nestes tempos pré SIDA, a sexualidade impunha os ritmos à vida e a efemeridade dos sentimentos parecia não contender com a força de ir ao encontro das realidades por inventar. Sex and drogs and rock n rol. O que não entendíamos era o que nos moldava a sagacidade da rebeldia. Até ao fim das madrugadas, as dúvidas e os impossíveis fundiam-se numa massa fluída e difusa morna e adocicada, qual sopa genética inicial, penetrando os corpos enlameados e sem fronteiras. Noites paralelas ao mundo que bramia lá fora, enquanto o resto, que era maior do que o todo, medrava silenciosamente nos interstícios do dever. A dança. Ah! A dança! Expulsava os demónios e os deuses e, contaminando o desassossego do conhecido e previsível, fazia emergir do nada um novo sagrado a cada palavra. A cada gesto. O gesto que veio, ainda antes, do verbo. Hierofanias volúveis e sincréticas recriando a formação do mundo. O mundo em si mesmo, uno e diverso como o vazio das tempestades. Todos éramos deuses e não sabíamos. O que para trás ficava, para trás sedimentava nas profundezas dos socalcos do esquecimento. A música amparava o que não tinha sustentabilidade, era a continuidade do nós. Proibido proibir, façam amor não a guerra, no nukes, sea sun and sex, amor livre, maios e depois abris. Um plasma majestoso inebriando as valetas nauseabundas da sociedade, as paredes sensíveis da cultura revelada e infecta.
Agora, desconhecidos num mundo estranho, penetramos o tempo injetando de melancolia a noite. Libertos pelo álcool e pela dor – pelo reverberar dos tremores da alma -, avançamos pelo silêncio do passado. Dos muros antigos, da cal escalavrada, da argamassa exausta deslizam monstros tenebrosos, figuras emergentes das sombras, dos desfiladeiros inóspitos do amor e do ódio, da raiva, envolvendo os transeuntes e conduzindo os seus passos. Arrastando-os na nebulosidade da luz noturna. Ninguém escapará aos demónios da noite, as consciências rastejantes avançarão na lama do devir, sinuosas e uivantes, as cavernas hiantes abocanharão os incautos e os crentes: as peripécias que o sonho comporta se a agonia refrear os impulsos do coração contrafeito. Viajamos no passado, percorrendo o futuro por cumprir. As memórias são, agora, correntes ascendentes ao encontro do delírio. Disforme, enleia factos e fantasias.Tudo não passará de uma construção de realidades pré-cartesianas. Nada existe para lá do sonho. Voltamos atrás, ou melhor, tentamos voltar atrás, percorrendo caminhos de antanho. Pisados por outros pés desenhando as mesmas pegadas no pó rarefeito. Mas o que procuramos não nos espera onde seria expectável. Há locais que desapareceram na voraz fabricação do tempo. Outros, julgando vencer a compressão do que existiu no condomínio de mentes paralelas, ainda exibem vestígios do passado entranhado no esquecimento. A nossa demanda confunde-se com uma arqueologia dos sonhos, uma procura no infinito da frase. Por cada socalco que atinges, novo abismo se abre. O nevoeiro que vem e tudo cobre, faz-te voltar atrás. Não entendes um degrau quando a escada se estende pela lonjura da memória, sem pontos de referência onde te apoies. Se fosse possível atravessar a densidade das memórias, os destroços espalhados pelo caminho, constataríamos que o mundo conhecido de uma vida contém todo o passado da humanidade, sendo que esse passado seria, sem dúvida nenhuma, o cosmos que tudo comporta e manipula.
Entramos no Arroz Doce.
Já tem nome: últimos. Será o dito.
Continuo a saga pelos caminhos inconclusivos do inferno...
Quando morremos, nunca morremos sós. O nós não existe apenas na nossa alma. Estilhaços da nossa consciência, ou seja lá o isso for, exista ou não infinitude dos tempos, alojam-se nos outros e contaminam existências que vivem as suas próprias espiritualidades. As suas sobrevivências no efémero que transportamos. Cada um percorrendo caminhos autónomos, carregando múltiplas identidades e confrontando condicionalismos diversos, forma-se, constitui-se e constrói-se a partir dos avatares que circulam na proximidade oceânica da vida. Às vezes na contramão do devir. Alguns constituem-se somente da bebedeira dos outros. Essa embriaguez que é percecionada, para lá da realidade, como se a realidade fora. Cada um entende a si mesmo e o que o é possível receber do espaço extrassensorial de diversas maneiras. Inadvertidamente, o fora e o dentro confundem-se e confundem-nos para lá das circunstâncias. O eu múltiplo existe e subsiste fora do ser que o asperge nas palavras dos outros. Fora de mim, de nós, navega, argonauta oculto na penumbra de um plasma iniciático, ecrã onde se projetam e reproduzem as sombras dos sonhos embrionários, paradoxais, um eu desconhecido, arquipélago da consciência deslaçada desejando o todo numinoso. Inatingível. Muitas vezes, a maior parte de mim acontece fora de mim. Na periferia dos companheiros que viajam na perplexidade da planície habitada. É por isso que a morte acarreta uma derrocada em dominó dos que nos acompanham na efémera caminhada. Hoje e ontem e ainda mais para lá de nós. Quem não tem medo da morte não investe na vida. A vida é um embuste para os que se libertam da ameaça da morte. Os que a temem e reverenciam desenvolvem toda uma panóplia de estratagemas, ações e omissões para a ocultarem. Nestes, os artistas são os mais engenhosos mas, recorrentemente, os piores sucedidos. Ocultam a morte como ninguém…
A foto é de um amigo que já partiu. Foi personagem d`"Uma Mulher Disponível" e da minha vida.
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