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eu e o meu demoniozinho

por vítor, em 11.11.11

 

(A minha intervenção no encontro de escritores Algarve - Andaluzia em Tavira. A intervenção foi feita de improviso e só agora a consegui passar a escrito. É claro que se perdeu a graça do improviso...)

 

Quando me convidaram para participar como escritor neste encontro, lembrei-me logo dos tempos em que deixei de ser adolescente e me tratavam por senhor. Olhava para todo o lado à procura do tal senhor. Escritor, escritor, onde?

Os encontros de escritores são, como outros ajuntamentos de camionistas, antigos combatentes, motards ou filatelistas, momentos rituais fecundos no que diz respeito à exibição de egos e mergulhos na memória dos participantes. Pouco acrescentam à criação literária.

Nos domínios artísticos, as obras falam por si e são fins em si mesmo. Os criadores pouco têm a dizer sobre as suas criaturas. No caso da escrita, são os leitores que melhor habilitados estão para falar delas. Os criadores poderão sim, e aí pode residir o interesse maior destes encontros, falar dos processos de criação. Pior do que os escritores, a falar das suas obras, só os críticos ou, como agora está na moda, os recenseadores.

Esta estória de encontros literários faz-me sempre recordar o célebre encontro entre James Joyce e Marcel Proust: vivendo os dois em Paris e sendo já autores consagrados de idade avançada, foram convidados para um jantar pelos seus admiradores, que achavam incrível que estes dois monstros das letras nunca se tivessem encontrado. 18 de Maio de 1922, o restaurante Majestic, cheio de jovens aspirantes à glória (Picasso era um deles), esperava ansiosamente os dois homens. Chegaram atrasadíssimos, James Joyce perdido de bêbado dormitou com a cabeça entre os pratos e copos da mesa. Trocaram umas poucas palavras sobre achaques, mezinhas e medicamentos e… Proust mandou vir um táxi para se ir embora. Quando se preparava para abandonar o local, James Joyce entrou de rompante no táxi e acendeu um cigarro. Proust, asmático pareceu não ter gostado muito. Da boleia incontornável e do fumo. Do que se passou durante a viagem, talvez o mais interessante do encontro, ninguém saberá nunca avançar nada…

No meu caso, escriba automático utilizando uma velha “metodologia surrealista”, a tarefa ainda se torna mais complicada. Sou espectador da escrita que a minha mão lavra. Habita em  mim um demoniozinho que conduz as minhas palavras para onde quer e quando quer. Eu apenas funciono, e sem grande sucesso, como censor. Impus-lhe uma estrada por onde ele pode evoluir: para a frente, para trás, mais devagar ou mais depressa. Essa larga, se bem que sinuosa via, desembocou  em dois livros geminados, prosa/poesia, à volta de elementos soltos e errantes: Transeuntes e Partículas. Seguir-se-ão dois novos irmãos, também prosa e poesia, que (des)escrevem trajetos, linhas sinuosas e descontínuas: Cicatrizes e Danças(?).  A estrada  desaguará, numa fase final, em superfícies. Planas, instáveis e desconexas, onde emergirão os romances acompanhados, sempre, de poemas e contos. Estes últimos livros terão títulos como Substâncias, Planícies ou Nomes. Nesta fase, a larga estrada já deu lugar a um mundo imenso que se confundirá com a própria vida.

Como já repararam os meus livros de ficção sairão sempre em pares, um de prosa e outro de poesia, e terão sempre um título com uma só palavra no plural.

Como vos disse, o meu demoniozinho escreve ao sabor da sua loucura, da nossa loucura. Nas toalhas de restaurantes, em papéis soltos, em cadernos de todo o tipo, em maços de cigarro, e a qualquer momento. Chego mesmo a encostar o carro na berma, subitamente, para que sua excelência crie. Como é bem de ver, a obra dispersa-se por múltiplas pequenas superfícies e, por conseguinte, perde-se e desaparece com muita facilidade. O que não representou  nunca qualquer preocupação do artista possuído e, muito menos, do artista residente. Nunca houve, por parte dos dois, grande preocupação em registar na pedra o que se ia acumulando em gavetas, sacos plásticos ou interior de livros e cadernos ou desaparecendo nas mudanças de casa e território.

Entretanto, a vida do transportador sofreu duas grandes revoluções provocadas pelo que de mais significativo e hierofânico acontece na vida dos homens: nascimento e morte. Quando nasceu o meu primeiro filho deixei de escrever. O meu demónio pareceu exorcizado por esta irrupção de vida e, gentilmente, desapareceu. Fiquei tão feliz que nunca mais me lembrei da escrita. A felicidade redobrou com o nascimento do meu segundo filho. Estes tempos de amor incondicional e de entrega à família foram, sem dúvida, o alimento da felicidade. Mas o facto de não escrever também, certamente, contribuiu. O silêncio do “animal da cabeça”, para citar o poeta Rui Dias Simão, fez-me voltar aos tempos felizes da infância. A vida voltou a ser a realidade imposta pela realidade. Não pensar no passado nem no futuro. O presente todo sempre presente no tudo que se enfrenta. A eternidade dos dias.

No entanto, o estagnar do tempo não poderia continuar. A inquietude que me habita haveria de voltar. E voltou. O diabinho voltou e com uma força maior. Um regresso não desejado que, no entanto, funciona como escape para as tensões (sem razão de ser) que me destroem. Voltou mais sombrio e profundo, mais simbólico e menos sensorial. Eu, o hospedeiro, nada fazia para publicar a obra semi-heterónima. Até que a vida, que sempre se atravessa no caminho das ilusões, me fez mudar repentinamente de ideias: a morte do meu pai, que me arrastou até ao fundo do fundo dos abismos mais escuros e fundos. Pensei que nunca poderia sobreviver à sua “ausência”. Que o mundo passaria a ser um conjunto de sombras vagamente percecionadas, onde erraria sem destino até ao fim dos meus dias. Compreendi, então, a efemeridade da vida e a fragilidade das coisas. Esta constatação, dolorosa, levou-me, finalmente, a querer deixar para os que me acompanham e os que me acompanharão, a escrita que tenho vindo, há muito, a desenvolver. Tornei-me um Indiana Jones à procura da escrita perdida. Mergulhei no passado para reescrever o futuro. Parte do que escrevi perdeu-se para sempre na confusa e longa caminhada. Mas, mesmo assim, muitas coisas fui desocultando de sótãos, interiores de livros e cadernos, de gavetas que fui organizando em blocos cronológicos (raramente temáticos). Assim foram surgindo os meus livros.

Como nunca me inseri em meios artísticos e capelas literárias (sem criticas a estas “instituições, sou um eremita  congénito), vi-me sozinho a querer divulgar os meus livros num blogue que criei para o efeito, sem grande sucesso, diga-se de passagem. Desta forma não tinha qualquer forma de publicar de forma normal, numa editora tradicional, até que vi o Pacheco Pereira a falar na TV de um livro dum jornalista conhecido publicado na BuboK. Uma “editora” on-line sem custos O escritor torna-se tudo: escritor, paginador, revisor, designer e editor de si próprio. O livro só ficará acessível através da compra no sítio da Bubok. O escritor tem que comprar a sua obra para a ter em papel. Não há excessos, só se produz quando alguém compra. Como o camponês, o escritor domina toda a cadeia de produção: semeia, cuida e colhe. É claro que encontrar o livro na selva cibernética é como encontrar uma agulha num colossal palheiro. Que se lixe, assim também fujo ao circuito clássico do beija-mão e das peias patrocinais de capelas, editoras e livrarias. Como permito os descarregamentos livres, tenho constatado, com prazer indisfarçável, que há centenas de pessoas a ter acesso aos meus livros. E as pessoas que descarregam não é para oferecer a alguém, para ostentar debaixo do braço ou numa estante, é para ler. No money, but happy. Em qualquer parte do mundo ao alcance dum clique. De vez em quando compro uns tantos e vou oferecendo a amigos, em ocasiões especiais. Eles adoram a gentileza, quase sempre surpresos com o criador que desconheciam. Se o lêem ou não, não sei nem me interessa. Penso que este vai ser o futuro da edição de livros. Cada um é dono e senhor da sua obra, sem amos e sem inclinações de dorso. É claro que gostaria, um dia, ou muitos dias, de ver a minha fotografia na capa de um suplemento cultural de um jornal de referência. Porém nada farei, a não ser escrever, para isso.

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publicado às 11:40

palavra ibérica

por vítor, em 08.04.11

 

Há sempre um escritor desconhecido entre o almoço e o jantar...

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publicado às 22:23

UGH

por vítor, em 20.07.10

 

alguns médicos aconselham a respirar fundo todas as pessoas que se sintam vivas. depois de “revolução ontem”, sai amanhã “utopia agora”; no fim-de-semana terminará a trilogia com o volume “os abutres também dançam”. poeta morre acidentalmente afogado em questões de estética após ter escrito um decassílabo sem querer. certos índices aumentaram mas outros continuam a descer, enquanto as percentagens, pouco sujeitas a este tipo de flutuações, continuam relativamente estáveis. o conselho reuniu de urgência, certas medidas foram tomadas e os resultados serão revelados assim que for possível. o caso está a chocar as autoridades e as pessoas mais tristes. quem estiver farto que se atire. corroboro disse ele, mesmo antes da sobremesa.

 

João Bentes, em "Agonia.

 

(um outro escritor - fora de jogo - da ria)

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publicado às 13:09

valter hugo mãe no governo

por vítor, em 22.06.09

valter hugo mãe, escritor, estreia-se com vocalista dos "governo". Ouçam-no, aqui, em "meio bicho e fogo":

 

 Dos governo fazem parte António Rafael e Miguel Pedro (dos Mão Morta), Henrique Monteiro (dos Mécanosphère) e valter hugo mãe, na voz. Este duplo CD custa apenas 4 euros e os lucros revertem a favor da AMI, para combate à info-exclusão.
valter hugo mãe, neste governo, não só escreveu os poemas como os interpreta.

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publicado às 15:56

Boris Vian

por vítor, em 10.03.09

 

Boris Vian, um dos meus escritores preferidos, nasceu há 89 anos. Quem nunca leu "Hei-de Cuspir-vos na Campa", não leu quase nada.

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publicado às 18:56

Alfarrobas e adolescência

por vítor, em 01.09.08

 

Nos tempos da apanha da alfarroba pareço mergulhar na adolescência. Só me apetece entrar pelas noites adentro como gato à procura de sonhos já sonhados...

 

PS: Não tenho andado com disposição para grandes escritos. No entanto estou pouco preocupado. Como diria a grande filósofa dos nossos dias, Lili Caneças, não escrever é só o contrário de escrever.

PS1:O meu amigo Pedro Alves vai compensando esta ausência de palavras novas com algumas referências a palavras antigas e projectos novos deste vosso criado. Recomendo-vos vivamente a passagem pelo canal sonora, o belíssimo blog do amigo supra citado.

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publicado às 14:20

Por um caminho sinuoso...

por vítor, em 30.07.08

 

Cumpre-me o doloroso dever de vos comunicar que aceitei constar como excepção neste, neste, neste...           falta-me o nome colectivo para este grupo onde atraquei.

 

 

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publicado às 22:21

Às cinco da tarde de um dia qualquer

por vítor, em 08.01.08

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            Não me digas que as galinhas gostam de queijo?, perguntei incrédulo, mergulhado na areia da praia postiça.

            Sim, respondeste, com cara de poucos amigos. E têm preferência por queijo da serra.

            Seriam quatro horas da tarde de um dia qualquer e o vento soprava de penente, sem dó. A areia fazia-me cócegas na parte inferior dos tornozelos. Na praia deserta começava a fazer sentir-se um odor a precipício e prossegui o questionário inquisidor: e a que sabem as galinhas comedoras de queijo?

            A galinha, naturalmente, respondeu a minha amiga, do outro lado da maré mortiça.

            Tinha lógica. Galinha alimentada a milho não sabia a milho, pois não? Mas queijo??!!

            Bom. Esqueçamos as galinhas que outros problemas amoro-filosóficos mais prementes se alevantam. Mas queijo?...

            Ah, e aquela dos ouriços que não gostam de cães?, perguntei maldosamente.

            E com toda a razão, opinou espontaneamente a minha bela e colaborante arqueóloga de sonhos escalavrados. Se os cães gostam de ouriços – gastronomicamente falando, claro – é de todo natural que estes não os apreciem e …

            Interrompi a sua rápida e incisiva (diria mesmo canina) argumentação, com não menos veloz e flamejante raciocínio. Mas eu gosto de ti e, até às cinco da tarde como prometido, tu gostas de mim.

            Não confundas gastronomia e sobrevivência, com amor e ódio. Replicou sem pestanejar. Eu sobrevivo sem ti, sem amor e sem ódio, até ao fim das marés. Sem religião não existem escravos. O amor e o ódio cativam as consciências obtusas da servidão.

             Meu Deus!

            A abrasão arenosa envolvia-me a pele peluda dos milénios. Nos joanetes assexuados convergiam exaustos os fantasmas da perplexidade funesta. Da atmosfera cálida. Reacção dos poros epidérmicos à invasão sedimentar. Na imaginação imensa da maresia, atropelavam-se cães, galinhas, ouriços e sexos. Sexos brandos e apocalípticos, soçobrando de espanto.

            O ódio aproximava-se devagar, como era conveniente. Conveniente e imperioso. Na vastidão absoluta dos sentimentos inertes uma gaivota de papelão guinchou na tarde. Da anti-praia sons da aproximação do Levante invernoso. As areias da vida movediça envolviam-me calorosamente e sem mágoa visível. Dizível, pelo menos. O fim da tarde fazia o seu caminho, inexorável.

            A minha tia alimentou os felizes galináceos a queijo e nunca se queixou da cor da canja. Mesmo a crosta, que envolvia o caldo milagroso, lhe era meio indiferente. Aproveitava-a para barrar o pão.

            O atrito da caneta do tempo soava sulcando o papel da vida. Arrepiava no silencioso tombar do dia. A solidão, brutal e sanguínea,  assomou às cinco da tarde de um dia qualquer. Até ao fim das marés.

 

 

Texto para o Luíz Pacheco. Um escritor como outro qualquer.

 

 

 

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publicado às 19:51


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