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O filósofo e poeta Luís Serguilha falando-nos dos tempos de hoje e dos tempos dos tempos.
Quando cheguei, atraquei de mansinho ao porto – há que oferecer a quem nos espera a ternura da beleza – e saltei da embarcação que me conduzira com uma desenvoltura que me surpreendeu: a velhice lentifica tudo, e tudo aproxima da horizontalidade os dias da proximidade ao indizível silêncio que nos espera. Às gaivotas dolentes, lancei o meu olhar humano de superioridade vulgar e continuei ao encontro do nada embrulhando-me nas ruas estreitas e escuras que deixavam as águas do mar para trás. As ruas que me tragaram de imediato como se engole um engodo pensando do próprio isco se tratar. Uma música ricocheteava nas paredes sujas e gastas da cidade que me conduziam os passos. Os passos e a alma. A alma que se limitava há anos a seguir-me como canídeo obediente e fiel. Domesticada, arrastada pelos caminhos que o destino traçara. Destino de que troçara quando o corpo jovem e cruel rompia a vida caminhando nos limiares resvalantes dos abismos. Corpo e alma correndo por entre as labaredas flamejantes em cavalgadas irregulares e insanas. Corpo cavalgando o desejo da carne, alma navegando as alterosas ondas da inquietude existencial. Uma alma estrangeira, desejando o impossível das desassossegadas tentações, ampliando as liberdades de quem quer o infinito. Quando, cansados da longa correria e da solidão dos caminhos divergentes, pararam e se encararam como nunca fora possível, a alma exaurida conformou-se à sua sorte: o conforto do veículo que a acolheria. A segurança do corpo envelhecido.
Um tango antigo soltava-se da porta de uma taberna escondida. Um corvo acorrentado habitava uma tabuleta com o nome do estabelecimento. Loucuras, disse o corvo. Loucuras, a tabuleta. Entrei, invadindo a penumbra quieta do interior do tasco. Subitamente, a minha alma soltou-se de mim e juntou-se ao corvo no alto da tabuleta. Loucuras, era o nome do corvo. Loucuras, foi o que minha alma lhe pediu.
Monte Gordo, 17/1/2019
Quando não falam em ti, apodreces.
Os dias passam e ocultas-te
Na pequenez da solidão que ensombra
As palavras indiferentes.
A quem interessa a estrofe sem leitor,
A porta escancarada na parede esburacada?
Lembra-te do tempo sussurrado,
Indiferente, revolvendo a terra húmida
Onde latejam vermes inconfundíveis
Que fecundam as trevas. Ninguém
navega sem conseguir entender as correntes
Que conduzem o devir. Ninguém se
Desconstrói quando o corpo resvala
Na ladeira que se ergue ante ti.
As ladeiras só existem na tua
Cabeça e o que procuras não está
Do outro lado da vida. Está aqui,
Junto às tuas mãos!
A outra margem só existe na penumbra
Do crepúsculo e mesmo assim
Só a acedes enquanto espuma
Evanescente. Espuma que encanta
Os que nunca se encontraram mesmo
Quando habitam vontades semelhantes
E percorrem veredas paralelas. Quando
Os olhares divergem do que realizas e és,
Da esteira difusa que cobre o passado
A que não podes voltar, reages
Como se a dor fosse uma impossibilidade
De regresso aos campos de restolho onde
O sexo convoca a inocência nas contendas
Do susto e do medo.
A ausência transforma-se num colapso de desejo,
Numa inusitada falência da vontade em
Penetrar o silêncio da realidade sarcástica.
O significado do ato envolve o que rejeita
A perplexidade, apodrece no tempo,
Na perdição que naufraga na escuridão e
Responde ao ego ausente.
Debaixo das nuvens moram os que não sabem saltar
Ao eixo nas noites eternas.
MG 14/06/2011
Saiu hoje para a rua. Debruce-se para dentro de nós e entre para o banco de trás. Venha respirar o futuro.
quando inclino o corpo
Quando inclino o corpo para a lentidão
redonda dos teus seios, vejo atentamente
que ainda não respiro o futuro.Sabes,
o pólen cai na boca dos que abrem
o silêncio. Sobra talvez uma fuligem em
cada pulso, levanta-se um leve vento,
mas os dias animados sequer encolhem
quando enlouqueces com as tuas baças
unhas amarelas...
Não é assim a casa desta manhã quando
os pintassilgos folheiam os cardos, e a cama
é devagar ao lado duma fogueira desmaiada.
As cabeças estremecem um pouco no
regresso do sol das dunas, há um navio
que deambula ainda no corpo, na exígua
memória duma guitarra e outras cordas e peixes.
Sim, alguém se debruça para dentro de nós,
quer sacudir a profunda alegria de sermos
uma realidade com sonho aberto...
Todavia temos os castelos que inventámos
após o murmúrio dos pinheiros altos, onde
guardámos as amoras, os medronhos
secos. Bebemos agora a água que resta
doutro vinho, proclamamos a prenhe volição,
a visceral palavra, e embora com uma ramela
a descansar em qualquer labirinto disponível
somos um carrossel de emoções descobrindo
aquilo que pressagiámos durante a vária
areia. Inclinamos o corpo e vemos atentamente
que ainda não respiramos o futuro...
Rui Dias Simão, Maio de 2010, edições CATIVA.
À venda neste modesto estabelecimento pela módica quantia de 7,5 euros (+ envio).
Anselm Kiefer
Cago na imortalidade sem corpo.
(um filósofo politicamente incorreto)
Da penumbra do corpo
solta-se um aroma rosáceo
que me envolve os dedos tontos
sussurrando ventos na pele arrepiada
Quem não entende as cicatrizes do tempo
passará a fronteira do desejo
resvalando nos socalcos palpitantes
da carne em sangue rumorejando
nas inconfidências do silêncio.
As palavras não produzem os efeitos
que projecto nas consciências obliteradas
jazendo em muros
sentadas na planície incompleta
as palavras só rastejam quando a noite
bordeja os caminhos repletos de obstáculos
insaciáveis
onde a chuva de Outono se esvai por entre o sexo
que nunca percorre os meandros
da podridão aconchegante.
Agora o nunca torna-se no sonho
utópico da viagem
acorrentando as pernas dos desconhecidos
que se amam
nas grades frias do paradoxo
animalesco dos genitais.
Não posso sentir a volúpia da tua intranquilidade
prostrada nos dias sem luz
na ausência que afunda o frágil
fluir da viciante entrega
ao outro.
Não posso dizer o que não existe no mundo
das palavras frouxas e malditas
sons sem espelho onde a vida se esconde e reflecte.
(Monte Gordo, 20/10/2009)
Luís Feito Lopez
Na carne enxuta
um cravo rasga a sedimentação brutal dos sentimentos
revolve as águas na aluvião do desejo amovível
Das prepotentes palavras
esquecidas
dos odores intensos da lama
desordenada
da gangrena, dos solavancos da carne,
pingam líquidos que constroem
estalagmites de medo
petrificam os perplexos louvores da memória
o tumor que envolve
amnioticamente a maresia
tornou-se o corpo são onde chapinham as ilusões
incompletas,
sóbrias e descalças
Um corpo entumescido
de vibrações inertes que borbulham
ao encontro da eternidade
Sincronizei a respiração com a tua. Primeiro pelo bafo quente que me varria o peito. Depois, sem conseguir sonhar alto, pelo tenaz ardor do sexo. Sendo a respiração una, os corpos gemem ubíquos e ígneos na calmaria da noite. O atrito das peles suadas electrifica e escalda as mentes esgazeadas. Torna-as caudalosas e indeléveis. Simples e vulneráveis.
Os pés rebolam na cama. Sinto o cotovelo a pairar no ar, oblíquo e sereno. Os cabelos, lianas do amor, aspergem os olhos fechados na procura da liberdade insultada por seres sem pulsões derramadas na urbe.
Lá fora a vida percorre os caminhos do costume. A embriaguez total e permanente envolve as avenidas.
Agora sinto os seios, invulgares, na solidão do corpo. Espraio a reacção das ondas preliminares onde, infantilmente, recolho o suco da mãe ausente. Arrepio-me saber-te no meu lugar. Aonde não há esquecimento nem prazer invertebrado e narciso. Se o eterno confluísse no nosso buraco negro, a vida seria, inacreditavelmente, simples e amorfa: osmótica, sábia e pura.
Nos amolgados lençóis, os dedos soltam-se pelas dobras do linho ancestral. A tua voz começa a sussurrar, rouca e prenhe, ecoando nos lares da vizinhança. Num estrebuchar de medo unimos ainda mais as nossas respirações e deixamos a incorrecção periódica dos dias ultrapassar o desgaste rotineiro da vida aprisionada. Aos solavancos trocamos líquidos inquinados e profanamos a inquietude hierofânica das almas. Lavramos a terra rasa de restolho, entre virilhas tumulares.
Ao fim da noite, fomos expulsar os espíritos selvagens numa mesa de café.
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