Saltar para: Posts [1], Pesquisa e Arquivos [2]


ESTUPIDA - no tempo das romãs

por vítor, em 24.02.13

Foto: no tempo das romãs - um conto meu na ESTUPIDA

À mesa no Piolho...

 

ESTUPIDA Magazine é uma publicação Edições Mortas, Black Sun editores e N edições.

Colaboram neste primeiro número :

Alexandra Antunes | Teixeira Moita | Luís Ferreira |


Fernando Esteves Pinto | Humberto Rocha | Théodore Fraenckel

|
Carlos Marinho Rocha | Név Vie |

Vítor Gil Cardeira |

António Pedro Ribeiro | Miguel Sá Marques | Raul Simões Pinto |

Rui Tinoco | Rui Caeiro | (autor desconhecido)

Director António S. Oliveira | arranjo gráfico: mão pesada |

Todos os artigos são da responsabilidade dos seus autores.

Depósito Legal: 21200404

300 ex. Janeiro 2013



 

No tempo das romãs

 

 

 

Sempre que a noiva comia romãs, tremia. Era como se um tufão se aproximasse da costa. A romã atuava nela como um poderoso afrodisíaco. Quando o tempo das chuvas chegou, devagar como convém nos secos clima mediterrânicos, a preocupação invadiu-me secretamente. Não tinha sido diferente naquele ano.

 

Do verde amarelado, foram abraçando o vermelho erótico e clamando pelo passante. O dito era eu, na maior parte das vezes. Mas, na calmagem dos caminhos calcários pousavam, por vezes, pés descalços e dançantes: era ela, a minha noiva.

 

Conhecia-a há três anos. Doce como o fim das tardes de verão sem vento, bela como só eu sabia, arrancou-me o coração no primeiro momento. O futuro toldou-se-me num tempo irrecuperável e incerto, como a filosofia que atrai multidões sequiosas de sangue. E diria ainda mais; a solidão recuperou o seu significado supremo: a dor sem possibilidade de sentir o prazer do coração aflito. Eu, para quem a independência era a vida. Nesse dia, há muito esquecido, entrou em mim uma luz que me sequestrou do mundo  e me enlaçou na morna sepultura do, dizem, amor.

 

Era doce como a tarde que se faz esperar. Como o caruncho da noite que não vem. Chegou e ocupou o lugar que era meu. Ocupou ainda mais de mim do que eu alguma vez teria ocupado.

 

Há três anos, era eu um rodopio fogoso e despreocupado, alegre e bondoso. As alegrias da vida percorriam o meu corpo como se ele fosse uma estrada em linha reta e sem ondulações. Passavam sem deixar marcas e o gozo era intenso mas efémero, como convém a um jovem à procura dos sentidos da vida. As próprias pegadas que deixava impressas nos terrenos virgens da existência desapareciam como sombras que as nuvens projetavam nas paisagens inacabadas do devir. Um filme sem fim a caminho do futuro interminável. Os dias sucediam-se sem memórias que me fizessem olhar para trás. Nem sequer para o hoje que se esvaia nas penumbras da noite. Alguns escombros que se atravessavam nos caminhos difusos da jornada eram transpostos com a facilidade da juventude que me tornava eterno e irresponsável. Mas como mudei em três anos! Vivia para ela e vivia dela. Os dias passavam e a embriaguez sussurrante das fímbrias dos seus vestidos entaramelavam-se nos meus sentidos. Relia no meu corpo a sensação cruenta e terna dos afagos de minha mãe. Os pensamentos não engrenavam no segmento seguinte e encavalitavam-se em cacos de ideias incompreensíveis e dolorosas. A amálgama de ideias impedia-me a ação. Ruminava imagens sem profundidade de campo de onde emergia o seu corpo envolto em roupagens finas e esvoaçantes. Das transparências assomava a carne concupiscente que me embriagava a existência. O meu corpo era refém do seu corpo fremente e lascivo. Só a carne assumia a impossibilidade de continuar a idiossincrasia das palavras. A independência das atitudes de uma vida sem perplexidades. Nada do que interessava se reproduzia por si mesmo. O que regia o tempo não era o tempo. A proximidade dos corpos controlava a mecânica do devir impossibilitando a construção de identidades autónomas e perenes.

 

 


Autoria e outros dados (tags, etc)

publicado às 22:53

cicatricem

por vítor, em 10.09.12

Autoria e outros dados (tags, etc)

publicado às 17:52

cicatricem

por vítor, em 10.05.12

 

Ontem, aquilo que te preocupava foi apagado

da memória e empacotado em livros discretos,

suportes de um tempo lavrado na cal das paredes

expostas ao cruel sonho da opressão, ao medo

que estilhaça a caminhada pelo pó onde

os pés rangem na noite espessa e sussurrada.

 

Ontem, os escombros que rejeitaste no novo dia,

ainda palpitantes e revoltos da edificação caótica

da véspera, esconderam para sempre as cicatrizes

que te vincavam o caminho silencioso, tatuagens

efémeras queimando a pele, incendiando

o caminho sombrio que o vento açoita.

 

Eis que de súbito, ontem ainda, se levantam

ondas alterosas arrastando os que ousam enfrentar

o desconhecido, que desenham caminhos utópicos

rasgando o apocalipse, os ciclos repetindo o tempo.

Esta repentina alteração na dança dos dados lançados

na planície apanha-te – nos princípios – desprevenido

e à deriva. Reaprendes a erguer-te da superfície instável

do devir, os olhos procuram outros olhos que te guiem

na imensidão do caos. Reaprendes a conhecer o que

importa na voluptuosa insolvência dos incautos.

 

Quando a correnteza das águas amaina, compreendes

que estás só, que os que te acompanhavam seguiram

outras  veredas por entre os obstáculos salpicados

na imensidão do futuro. O tamanho dos dias que se estendem

diante de nós representa uma barreira na progressão, mas,

ao mesmo tempo, um desafio maior que te espera:

o curto espaço entre a vida e a morte onde

a cópula desoculta o caminho.

 

MG/VRSA   4/2012

Autoria e outros dados (tags, etc)

publicado às 16:52


Mais sobre mim

foto do autor


Subscrever por e-mail

A subscrição é anónima e gera, no máximo, um e-mail por dia.


Arquivo

  1. 2023
  2. J
  3. F
  4. M
  5. A
  6. M
  7. J
  8. J
  9. A
  10. S
  11. O
  12. N
  13. D
  14. 2022
  15. J
  16. F
  17. M
  18. A
  19. M
  20. J
  21. J
  22. A
  23. S
  24. O
  25. N
  26. D
  27. 2021
  28. J
  29. F
  30. M
  31. A
  32. M
  33. J
  34. J
  35. A
  36. S
  37. O
  38. N
  39. D
  40. 2020
  41. J
  42. F
  43. M
  44. A
  45. M
  46. J
  47. J
  48. A
  49. S
  50. O
  51. N
  52. D
  53. 2019
  54. J
  55. F
  56. M
  57. A
  58. M
  59. J
  60. J
  61. A
  62. S
  63. O
  64. N
  65. D
  66. 2018
  67. J
  68. F
  69. M
  70. A
  71. M
  72. J
  73. J
  74. A
  75. S
  76. O
  77. N
  78. D
  79. 2017
  80. J
  81. F
  82. M
  83. A
  84. M
  85. J
  86. J
  87. A
  88. S
  89. O
  90. N
  91. D
  92. 2016
  93. J
  94. F
  95. M
  96. A
  97. M
  98. J
  99. J
  100. A
  101. S
  102. O
  103. N
  104. D
  105. 2015
  106. J
  107. F
  108. M
  109. A
  110. M
  111. J
  112. J
  113. A
  114. S
  115. O
  116. N
  117. D
  118. 2014
  119. J
  120. F
  121. M
  122. A
  123. M
  124. J
  125. J
  126. A
  127. S
  128. O
  129. N
  130. D
  131. 2013
  132. J
  133. F
  134. M
  135. A
  136. M
  137. J
  138. J
  139. A
  140. S
  141. O
  142. N
  143. D
  144. 2012
  145. J
  146. F
  147. M
  148. A
  149. M
  150. J
  151. J
  152. A
  153. S
  154. O
  155. N
  156. D
  157. 2011
  158. J
  159. F
  160. M
  161. A
  162. M
  163. J
  164. J
  165. A
  166. S
  167. O
  168. N
  169. D
  170. 2010
  171. J
  172. F
  173. M
  174. A
  175. M
  176. J
  177. J
  178. A
  179. S
  180. O
  181. N
  182. D
  183. 2009
  184. J
  185. F
  186. M
  187. A
  188. M
  189. J
  190. J
  191. A
  192. S
  193. O
  194. N
  195. D
  196. 2008
  197. J
  198. F
  199. M
  200. A
  201. M
  202. J
  203. J
  204. A
  205. S
  206. O
  207. N
  208. D
  209. 2007
  210. J
  211. F
  212. M
  213. A
  214. M
  215. J
  216. J
  217. A
  218. S
  219. O
  220. N
  221. D
  222. 2006
  223. J
  224. F
  225. M
  226. A
  227. M
  228. J
  229. J
  230. A
  231. S
  232. O
  233. N
  234. D