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Se dormisses como dormias antes de ter atravessado o rio que dividia a tua juventude do resto da tua vida, serias capaz de entender os sonhos que agora se recusam em aparecer nas sombras da noite. O que quer que fosse, não te traria a juventude de volta.
(…) e continuava escavando,
escavando a água que lhe escorria do corpo,
do interior da carne devoluta.
Atravessou a profundidade do princípio
através de árvores e pássaros
que o cumprimentaram com tristeza
estranhando a ousadia do cavador
desaparecendo na hiante cratera,
revelando o dentro onde a luz
varre a caverna essencial
para sempre corrompida. Cá fora
amontoam-se entranhas putrefactas
e repugnantes, instalação tempestiva
abrigando o futuro sanguinolento e breve.
A negritude das aves que disputam os escombros
traduz a poesia que se desprende das vozes,
do corpo escalavrado. (…) e continuou escavando,
escavando o sangue que coagulava na ferida rasgada,
nos socalcos da escuridão que cediam à tristeza
dos citrinos. A lâmina dilacerante faísca
ao encontro dos sedimentos mais sólidos da paixão,
rasgando fraturas na indizível serenidade
dos rochedos fossilizados, desocultando
chagas cicatrizadas no antanho das palavras
ornamentais, esquecidas no interior das faces
labirínticas do corpo.
Argonauta no pus amniótico que envolve
a memória, entranhando-se num mundo
de vísceras sem retorno, esquece a procura
dos primórdios fundadores da complexidade,
dos dias felizes maternais, afagos hipnotizantes.
As forças faltam-lhe por vezes na profundidade
das sombras fazendo-o parar. Repousando
nos escombros flamejantes da viagem.
Os amigos recentes ficaram para trás e a claridade
da superfície é já um ténue fio acariciando
as paredes mornas da solidão.
Recomeças a perfuração dos estratos
mais longínquos com uma violência que desconhecias.
Voam fragmentos estranhos e incandescentes
sulcando a memória incompleta. Sentes uma
inusitada ereção perante as fêmeas expostas
que se te cravam na carne. Há mulheres saindo
das sombras que te saúdam com o sexo húmido,
desafiando os medos acumulados em quartos
sem portas nem janelas, em fragmentos inatingíveis,
arquipélagos no imenso plasma do prazer que te
destrói a caminhada. Uma mulher que fodeste
uma só vez num molhe de uma praia deserta
arrasta uma criança que te olha de soslaio.
Só ingerindo a indigesta carne de cabra velha
poderás comunicar com os espectros
que vão pelo rio em sentido inverso.
Em vão agitas os braços, tentando
tocar-lhes com as pontas dos dedos.
Ultrapassas a cintura do sexo e penetras
um sedimento de lágrimas rasgando a lama
escarlate que emerge da sombra espessa e fria.
Ouvem-se gritos de crianças ansiosas, o vento
cala-se como se a noite se tivesse apoderado
de tudo e não precisasses de continuar a escavar
o que já não entendes como teu. Das vísceras revoltas
e ferventes solta-se um berro de recém-nascido.
O teu caminho chegou ao fim e um gato saltou
para o berço que te acolhe. O choro para enquanto
o felino se enrosca no leito que é também o da tua mãe.
Resta-te, sem possibilidades de regressar aos teus pensamentos,
escalavrar os corpos dos outros.
O espelho não é tão aconchegante, mas revela cambiantes
externos que compensam o rumorejar das entranhas.
MG/VRSA
22/5/2012
dirias que a sanidade mental é um pergaminho afixado na parede para ser lido por quem não sabe interpretar as palavras lavradas na pele antiga.
Como é possível continuar a resistir com tanta emoção. Caetano e Dylan juntos.
Vou ali derramar as lágrimas no chão por lavrar e voltarei tão breve quanto possível. Se não for possível , então ficarei a escarificar o restolho enquanto a beleza pairar sobre os que se arrastam na confortável dormência.
Era uma epifania anunciada. Mesmo assim senti-me como Moisés perante a sarça- ardente, na península do Sinai. Deus chegou, como o anunciado, às 21 e 40. Nunca falou directamente à assembleia. Envolveu-a com parábolas, hipérboles, analogias e outras piruetas retóricas tão bem do agrado dos crentes. Deus antigo, não sorriu. Deus que sabe que só a Sua presença basta, não fez nada para agradar a quem precisa do espectáculo divino.
Tinha medo, medo da Sua presença. Nunca tinha estado tão perto de um dos meus deuses. Vivo. Um dos maiores. Ou talvez o maior. Zeus de um panteão não muito extenso.
Por norma, basta-me a Obra Divina. O encontro com Deus pode sempre constituir uma desilusão dolorosa e marcante até ao fim dos dias. Lembro-me amiúde da estória do sociólogo Jean Cazenneuve sobre o miúdo apaixonado por uma cantora de ópera, que a segue por todo o lado e que um dia, após um concerto, ganha coragem e invade clandestinamente os bastidores, para a abordar. Quando a encara, esta, está sentada na sanita a mijar. Toda a mágica se esvanece e o rapaz sai espavorido da cena deixando para trás uma mulher atónita. Nunca mais quis saber de óperas nem de cantoras de qualquer género musical. Os deuses também têm caspa...
Bob Dylan. Está ali. Um velhinho de vestes ridículas. Pernas abertas e tortas perante um órgão baixo. São estas pernas que mais interagem com a música. Uma voz roufenha e hoje incompreensível. Não mexe numa guitarra. Toca músicas que não conheço ou não entendo. As músicas que comigo atravessam os tempos são outras. Só a custo registo a balada de um homem magro (o melhor momento da liturgia). No final, como uma pedra rolante. A pergunta how does it feel, já não soa como uma pergunta. Like a Rolling Stone, já não soa como a resposta. No entanto as lágrimas assomam quando a harmónica soa na noite.
Registo com apreço a Sua recusa a envolver-se na sociedade em que tudo tem um preço. Nada de fotografias ou imagens para banalizar o mito. Ou comerciá-lo.
Desiludido? Não! Nunca! A um politeísta como eu. Na alma de quem os deuses são homens que se tornaram génios a obra é o que conta. Continuarei a evangelizar até ao fim. A Sua presença basta-me.
PS: Metido à estrada com um filho de 18 anos, este on road again torna-se, por si só, outro momento mágico. Por ele o festival durou da 5 às 3 da madrugada. Eu não duraria muito mais e, quando o consegui sacar do cuduro dos BuraKa, estava à beira da rotura física e mental. Para um quinquagenário misantropo, 10 horas de festivais são demais. No entanto, hoje em que escrevo estas palavras, sinto-me muito reconfortado na minha auto-estima por ter aguentado tanto…
Não fora já ter bilhete para o Robert Zimmerman, para o dia 11 em Oeiras, e assim ter esgotado a minha cota anual de presenças em grandes confusões, era ao festival do Sudoeste que iria.
Dizem que esta menina lá vai estar.
Nneka na Zambujeira do Mar?
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