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A vaidade, vanitas, é tão antiga quanto o homem. Tão antiga quanto a cultura. É a figura humana, e não a dos bichos, que aparece mais na arte rupestre. O homem precisa de se ver fora de si para se entender. No entanto, a vaidade, vital para a sobrevivência e reprodução das espécies, tornou-se anacrónica. Ritual de aproximação ao sexo que possibilita a perpetuação de nós próprios, bailado nupcial que nos ilumina e altiva, que nos projeta na cena onde se digladiam os aspirantes à eternidade, rito complexo catapultado pela tesão, virou, nos tempos atuais, um comportamento ridículo, grotesco e desnecessário, contraproducente, na maioria dos casos, nas sociedades globais cosmopolitas e digitais. O pavão de antanho corrompeu o bailado e invadiu, ruidosamente, a aula de ioga. Como a feroz apetência pelo açúcar, que sendo raro na natureza nos impelia sem descanso na sua procura, se tornou um empecilho pois continua a atirar-nos para o doce quando ele se encontra por todo o lado e nos mata pela proximidade, ubiquidade e acesso fácil e, invariavelmente, consumo excessivo. A vaidade não mata mas ridiculariza. O que mais espanta é a vaidade dos que tudo isto sabem. Não arrepia o jovem adolescente acelerando a sua mota ruidosa e levantado a roda frontal em erecção brutal. Não perturba o homem feito saindo do seu Ferrari de smartfhone colado ao ouvido e olhando de soslaio os transeuntes. Não espanta mesmo o tolo que comprou o último grito de farda imposta pela moda e se pavoneia ignorante da troça das elites, que já se passaram para o outro grito. A velocidade estonteante da moda desorienta mesmo os criadores que a repetem à exaustão e tornam moderno o antigo. Paradoxo de ser o ontem mais moderno que o hoje. O que arregala os olhos e arrepia as pilosidades dos corpos é a vaidade refinada de escritores, cientistas e outros pensadores. Na mais lamacenta das fluorescências da luz, vivem encandeados com a sua própria beleza. Criadores e criaturas. Narcisos que resistem ao mergulho nas suas luminosidades reflexas. Quem nunca os viu e ouviu e que por eles foi submerso pela áurea divina, que atire a primeira pedra. Pedra de luz, está claro. Meteorito atravessando a sombra do eleito. Suprema vontade de rir, de enlouquecer com a volúpia de ser. Não há escória que resista a tanta luz do metal em fogo. Fundido e fodido. Criaturas nadando na sua própria espuma inútil. E, destes todos, é o escritor o mais altivo e arrogante: veste-se de palavras inúteis, cria um mundo paralelo onde navega, flutuante e besta, no caminho da glória. É certo que o ridículo e a pobreza moral matam. Mas nem a morte os detém. É a eternidade que os motiva, que os anima e conduz. Quando são bons e criadores de excelência, esquece-se o homem e vangloria-se a obra. Quando medíocres, dão dó, pena. Quase todos se autonomeiam de humildes. De apaixonados eternos. Contradições que nem compreendem: a humildade é, hoje, um valor inflacionado e precioso; a paixão, por natureza – e definição – efémera. São todos solitários, como amam a solidão!, veneram a arte e a cultura, o silêncio, oh, o silêncio!, a amizade, o vinho, as mulheres, e os homens, a natureza, a viagem, a margem, ah, a marginalidade divina!; a volúpia do abismo, as requentadas sombras da noite, os tempos de criança, a lembrança dos melhores pais do mundo, ou piores, que vem a dar no mesmo, o primeiro amor, os cheiros da terra quando chove, a eterna juventude! A amizade – a amizade tornada labirinto e leito de vida e de morte, amizade que azeda e vira guerra sem tréguas e fratricida na hora do confronto. Do confronto das ideias e conceitos estéticos. Ninguém aceita ninguém. Ninguém aceita o outro enquanto outro. Se fores outro iguala a mim, és um outro aceitável e meu.
As folhas das árvores cumprem o seu destino. Eu cumpro a vida. A vida sem retorno. Por entre o murmúrio das vozes polifónicas da consciência esculpida no bloco inatingível do passado, talho a viagem sem destino que o tempo transporta para o fim do futuro. O chão pisado fermenta. Quando pensas no corpo – no teu corpo -, abre-se uma cratera de sonho no desejo que te enforma e conduz. Uma exterioridade donde te contemplas como se fosse uma entidade estranha e o teu corpo um fragmento do desejo dos outros. No silêncio da tarde, apodreces e ficas sossegada vendo o futuro a esvair-se nas memórias esquecidas.
De onde vens, se o outono passou e não podes mais brincar aos meninos? O tempo foge-nos quando tentamos abraçá-lo e entendê-lo. Como Santo Agostinho, sei o que é o tempo mas ao tentar explicá-lo, foge-me por entre os dedos como areia. Ainda ontem, corria pela praia como se não houvesse futuro. O vento fazendo ondular os cabelos que se derramavam até às costas. Os meus pais queriam que fosse menina. A primeira fotografia tirada nos Estúdios de Fotografia Andrade, junto ao mercado das verduras, mostra-me de vestidinho branco e um longo cabelo negro atado por cima da cabeça. Um totó, parece-me. Já me sentava sozinho, e por isso já devo ter um ano. Era mais eu que eu.
Depois, depois tornei-me num rapazinho solitário que gostava de chuva. Quando o cheiro da terra aspergia o ar às primeiras chuvadas do outono, gostava de passear descalço recebendo as quentes e grossas pingas no rosto. Coitado. Faz tanta pena, diziam em surdina os aldeãos com sinceridade. Ninguém deseja mal a uma criança. A minha mãe não queria saber de excentricidades. Muito menos no seio da família. A vassoura trabalhava em funções estranhas ao seu destino. Nada me demovia. A chuva que me escorria pelo corpo era a euforia que me faltava para as outras coisas que, supostamente, deviam ser do interesse das crianças. Cresci à chuva. Um dia, a minha mãe passou-se e passei a interessar-me mais pelo verão… tinha ido de comboio para Tavira. Chovia lá fora. Nariz colado ao vidro da carruagem que corria pela paisagem que não me interessava. Só a obliquidade da água que riscava o vidro sujo da janela. Desembarquei no apeadeiro da Porta Nova e pus-me a caminho de casa. Cinco quilómetros até casa sob as nuvens generosas. Nas valetas corriam riachos que desembocariam em ribeiras que levariam a chuva ao mar. Ao mar próximo que sempre me acompanhou. Até ao fim.
Quando passei a amar o verão, descobri as raparigas. Quando passei a amar as raparigas, descobri os livros. E quando os livros entraram na minha vida, o tempo passou a funcionar de uma outra maneira. O que é o tempo? Um rio que corre do passado, atravessa o presente e perde-se, ao longe, fora da vista, no futuro que ninguém deseja. Todos sabemos que um dia irá desaguar no mais incompreensível oceano, o futuro do futuro, a noite mais escura de todas, as trevas mais escuras das trevas: a morte. Agora, o tempo deixou de ser linear, e o antes confunde-se com o depois, que se confundem com o agora e mesmo com o que nunca aconteceu ou acontecerá. Passei a viver em mundos que se cruzam e entrecruzam, mundos que me prendem e arrastam, e amalgamam, e confundem, me transportam para onde não sei se poderei ir, para onde vou sem saber se fico, como folhas num dia ventoso de outono.
Mais uma página do romance sem fim. "Últimos".
Há um tempo para tudo. E tudo poderá ser o mesmo que nada. O tempo funde o tudo numa amálgama disforme e primordial. A memória revolve o tempo tentando reconstruir uma narrativa linear e cronológica, partindo da ausência assume a postura de um construtor de mecanismos coerentes que sustentem uma moral para o indivíduo se poder encaixar no coletivo que o arrasta e sufoca nos irrefutáveis labirintos da verdade. O tempo e a verdade, conceitos que se sobrepõem, coexistem na imensa pradaria das falsidades. Se os outros nos convencem que a vida é um fluir de eventos numeráveis e distintos no tempo, o melhor seria deixar de representar o papel que o inconsciente e o determinismo social nos impingem e conduzem pelo infinito que nos enforma. O esquecimento trará sossego e renascimento. O empecilho para este desiderato é a sedimentação dos destroços dispersos no fundo da memória. Quando adormecidos parecem inertes e inférteis, desaparecem sem rasto nos confins da memória. Quando emergem dos estratos pesados, profundos, impulsionados por estímulos incontroláveis e selvagens, rasgando o esquecimento e emergindo à superfície, manipulam a vontade e impõem condutas irracionais e bruscas que nos desenham bailados irracionais e projectam quais sombras teatrais no pano de fundo que se move nas paisagens irreais das traseiras da existência. Não entender os humores dos outros causa desconforto e ansiedade, fecha-nos sobre nós próprios, colapso brutal que nos esmaga. Não entender o que de nós se desprende sem controlo, que aspergimos nas histórias dos outros, pode ser, nos primeiros tempos, confortável por nos revelar a fragilidade dos que se sentem metralhados pela incandescente energia que se liberta; mas, no médio e longo prazo, o seu poder destrutivo levar-nos-á a desistir do que julgávamos ser o caminho dos nossos sonhos. A desilusão perante o enfrentamento com o que de nós é mais visceral e verdadeiro, poder-nos-á fazer soçobrar e desistir de tudo o que, até aqui, construíramos. Conhecermo-nos é destruirmo-nos.
Só o esquecimento nos levará até lugares mais próximos da realidade e, por conseguinte, à vida. Quanto mais escavas em ti para extrair das trevas de ti próprio os fluídos que pensas que irão renovar-te, mais perto caminharás do precipício. E por muito gozo que as vertigens do abismo, do fim, te anunciem tempos de volúpia, de desafio e prazer, a morte ronda os teus passos e o sofrimento apodera-se do teu corpo manipulando o futuro. Manipulando o que pensavas ser a liberdade. E ninguém será mais limitador do livre arbítrio do que tu. O mais difícil será sempre contornar a memória. A vassoura do esquecimento nunca atingirá os recantos mais sombrios de antanho, o que resta impedirá o prosseguimento do caminho ao encontro de ti, as aprendizagens que julgavas libertadoras são, afinal, peias que te castram os tempos que terás ainda que percorrer.
Lê no meu corpo a escritura do silêncio. Navega, sem medo, através da pele fremente. As mãos celebrando os caminhos enquanto vagabundagem no crepúsculo do morno fragor do corpo, planando baixinho, roçando a penugem ondulante. Electrizando o relevo da carne. Da convulsa agonia dos vales incandescentes emerge a voz impercetível que guia as mãos ao magma que brota das entranhas ensandecidas. Embriagada, conduz os teus passos ao sabor das brisas impiedosas do desejo. Cambaleia, erra, pelas pradarias do sonho, entrega-te nos braços anestésicos de quem te recebe em sua casa. A ligeira penumbra que te tolda, mansamente, a vista impede a objetivação dos impulsos primários. Combustível que te atira irracionalmente contra as paredes da loucura. Caminhada sem dor amputando as banalidades putrefactas e entrópicas da loucura. O onanismo canibaliza a vontade dos ausentes, regurgita, convulsivamente, restos da memória que se escapam pelos esquivos e irregulares interstícios da moral burguesa. Quando as mãos se reencontram na praia súbita do ventre, a carne penetrada intumesce e rejeita o corpo estranho, abandonando-se na nudez da poeira difusa desfoca-o no tempo. Everything is out of the time. Agora será o tempo do puro e do cristalino: o vagar da realidade. O retomar das rotações nas roldanas dentadas arrastando as correntes do devir. Será inverno e o frio vem para sedimentar os dias. A sede de visita que nos trouxe aqui aplacará e semearemos ausência na ocupação do espaço que projetas em mim. Será um silêncio sem fim roubando a solidez dos nossos apetites vorazes sobre o outro. O outro que se confunde com o outro e, nunca rejeitando quaisquer identidades, castra e liberta, conduz, sem dó nem piedade, o corpo e alma até os envolver no plasma evanescente da solidão. Um rolo sem fim de sentimentos, de desejos, a explorar até que um dos outorgantes deste contrato efémero e, ao mesmo tempo, eterno rompa as vicissitudes da natureza e se transforme no todo que, mar e fogo, dilui as formas e atira os limites do horizonte para mais longe que o longe. Inalcançável e corrupto. Errante enquanto ilimitado. A pureza não nos transporta a lado nenhum. Ao outro lado das portas. A normalidade é sempre pura. O que se destaca e ilumina, infecta e corrompe, estará sempre nos antípodas do puro e do divino: para o pior e para o melhor. A cerimónia continuará pela noite fora, ululante e repetitiva como são todas as festas, desestruturando, e, depois, implodindo, a comunidade. A comunidade que a sustenta. Dos estilhaços incandescentes, da fusão das poeiras quedas, ressurgiremos, alguns dirão “ressuscitaremos”, envoltos em fluídos criacionais que o sexo asperge. Recompomos, sem reconhecer o horrível que nos rodeia, o que fora nosso e nunca soubéramos. A ausência recompensa os amantes, ofertando uma condensação de tempo que brota, como cogumelos selvagens, através dos poros e contaminam a carne sequiosa de amor.
De onde vens, se o outono passou e não podes mais brincar aos meninos? O tempo foge-nos quando tentamos abraçá-lo e entendê-lo. Como Santo Agostinho, sei o que é o tempo mas ao tentar explicá-lo, foge-me por entre os dedos como areia. Ainda ontem, corria pela praia como se não houvesse futuro. O vento fazendo ondular os cabelos que se derramavam até às costas. Os meus pais queriam que fosse menina. A primeira fotografia tirada nos Estúdios de Fotografia Andrade, junto ao mercado das verduras, mostra-me de vestidinho branco com um longo cabelo negro atado por cima da cabeça. Um totó, parece-me. Já me sentava sozinho, e por isso já devo ter um ano. Era mais eu que eu.
Depois, depois tornei-me num rapazinho solitário que gostava de chuva. Quando o cheiro da terra aspergia o ar às primeiras chuvadas do outono, gostava de passear descalço recebendo as quentes e grossas pingas no rosto. Coitado. Faz tanta pena, diziam em surdina os aldeãos com sinceridade. Ninguém deseja mal a uma criança. A minha mãe não queria saber de excentricidades. Muito menos no seio da família. A vassoura trabalhava em funções estranhas ao seu destino. Nada me demovia. A chuva que me escorria pelo corpo era a euforia que me faltava para as outras coisas que, supostamente, deviam ser do interesse das crianças. Cresci à chuva. Um dia, a minha mãe passou-se e passei a interessar-me mais pelo verão… tinha ido de comboio para Tavira. Chovia lá fora. Nariz colado ao vidro da carruagem que corria pela paisagem que não me interessava. Só a obliquidade da água que riscava o vidro sujo da janela. Desembarquei no apeadeiro da Porta Nova e pus-me a caminho de casa. Cinco quilómetros até casa sob as nuvens generosas. Nas valetas corriam riachos que desembocariam em ribeiras que levariam a chuva ao mar. Ao mar próximo que sempre me acompanhou. Até ao fim.
Quando passei a amar o verão, descobri as raparigas. Quando passei a amar as raparigas, descobri os livros. E quando os livros entraram na minha vida, o tempo passou a funcionar de uma outra maneira. O que é o tempo? Um rio que corre do passado, atravessa o presente e perde-se, ao longe, fora da vista, no futuro que ninguém deseja. Todos sabemos que um dia irá desaguar no mais incompreensível oceano, o futuro do futuro, a noite mais escura de todas, as trevas mais escuras das trevas: a morte. Agora, o tempo deixou de ser linear, e o antes confunde-se com o depois, que se confundem com o agora e mesmo com o que nunca aconteceu ou acontecerá. Passei a viver em mundos que se cruzam e entrecruzam, mundos que me prendem e arrastam, e amalgamam, e confundem, me transportam para onde não sei se poderei ir, para onde vou sem saber se fico, como folhas num dia ventoso de outono.
"Saímos já a noite se prepara para deixar a cena e a abóbada celeste resplandece estrelada. A chuva acompanhou a noite e com ela voltará. Outras vezes. Sempre. Sempre para nos aconselhar. Juntas ou separadas, para confortar a nostalgia. Bandos de gaivotas guincham no crepúsculo seguindo o rasto das traineiras que regressam da faina. Amanhecia com a luminosidade dos dias que procedem a chuva. Ainda havia luz no Texas. Penetramos na penumbra fosca da casa. Nat King Cole e a filha, Natalie, amparam o único casal que dança no centro da pista. Toda a luz lhes pertence. E a música. Unforgettable. Quase não se mexem. O homem, velho sem idade, sobrecasaca até aos joelhos, olhos cerrados, repousa os lábios, adivinham-se baços, num seio desnudo da companheira, jovem como o dia. (Rosa incandescente iluminado a noite.) Regresso ao amojo materno. Dançam como se o tempo se tivesse esgotado e esperassem outro combustível que o pusesse em marcha para continuar a vida de todos os dias. Desse vida à pesada engrenagem do devir. A realidade impositiva.
Vendo-nos no hall de entrada, um empregado sonolento explica-nos que espera o fim da dança para fechar a casa. O homem é cliente antigo e a cliente antigo nada se nega. Saímos surpreendidos com a claridade da madrugada. O empregado diligente presenteou-nos com duas cervejas. Caminhamos pela Ribeira das Naus e acabamos a noite, e as cervejas, no Cais das Colunas.
O Sol, erguendo-se na lezíria, incendeia o Mar da Palha. De ouro e bronze. Será a última vez que nos vemos. A distopia vencerá a eternidade. Para sempre restarão os sorrisos cúmplices varrendo a alegria de viver. Não haverá mais tempo para reencontrar o que é surpreendente sem causar espanto. O espanto nunca existiu. É apenas um rumorejar na noite dos tempos que contempla o cenário dos malditos aprendizes de ilusões. Agora, é tempo de recuperar os dias votados às aprendizagens inúteis. Deitar fora o que não marcou o corpo, sinais inscritos no que mais importava. Para isso, viver será o derradeiro desembarque na música celestial. Nas abóbadas do mal. No mundo regido pela embriaguez da tempestade. Colapso marcando o final do ciclo que nos trouxe até aqui. É já na eternidade do silêncio que caminhamos, costas com costas, quando os nossos passos se afastam. Se afastam de nós. Numa eternidade que é o reverso de toda a eternidade.
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