Saltar para: Posts [1], Pesquisa e Arquivos [2]



O homem que nunca sonhara

por vítor, em 14.12.17

 

O homem que nunca tinha sonhado perguntou:
- Que silêncio é esse que te gela os ossos.
A resposta, seca e corrosiva, que recebeu da rapariga sem imaginação, soou como uma praga de libelinhas.
- Quem não distingue a realidade da metáfora nunca chegará ao castelo do homem velho.
E assim se passaram muitos crepúsculos.
Um dia, igual a tantos outros, o homem que nunca sonhara sentiu-se feliz e compreendeu o significado daquele silêncio oco que esmagava como sombra cobrindo as pegadas dos pássaros, a consciência atulhada de sonhos dos outros.
Levantou-se e não conseguia caminhar. Esqueceu-se de como dar passos na direção da noite. Quando um pé abandonava o outro, um desequilíbrio inexplicável tomava conta do seu andar, impedindo-o de ir em frente.
Agora, inerte na luz, a rapariga dos silêncios sentirá que a vida é um sonho na periferia dos pesadelos da solidão.

Autoria e outros dados (tags, etc)

publicado às 14:53

a vaidade

por vítor, em 14.12.17

A vaidade, vanitas, é tão antiga quanto o homem. Tão antiga quanto a cultura. É a figura humana, e não a dos bichos, que aparece mais na arte rupestre. O homem precisa de se ver fora de si para se entender. No entanto, a vaidade, vital para a sobrevivência e reprodução das espécies, tornou-se anacrónica. Ritual de aproximação ao sexo que possibilita a perpetuação de nós próprios, bailado nupcial que nos ilumina e altiva, que nos projeta na cena onde se digladiam os aspirantes à eternidade, rito complexo catapultado pela tesão, virou, nos tempos atuais, um comportamento ridículo, grotesco e desnecessário, contraproducente, na maioria dos casos, nas sociedades globais cosmopolitas e digitais. O pavão de antanho corrompeu o bailado e invadiu, ruidosamente, a aula de ioga. Como a feroz apetência pelo açúcar, que sendo raro na natureza nos impelia sem descanso na sua procura, se tornou um empecilho pois continua a atirar-nos para o doce quando ele se encontra por todo o lado e nos mata pela proximidade, ubiquidade e acesso fácil e, invariavelmente, consumo excessivo. A vaidade não mata mas ridiculariza. O que mais espanta é a vaidade dos que tudo isto sabem. Não arrepia o jovem adolescente acelerando a sua mota ruidosa e levantado a roda frontal em erecção brutal. Não perturba o homem feito saindo do seu Ferrari de smartfhone colado ao ouvido e olhando de soslaio os transeuntes. Não espanta mesmo o tolo que comprou o último grito de farda imposta pela moda e se pavoneia ignorante da troça das elites, que já se passaram para o outro grito. A velocidade estonteante da moda desorienta mesmo os criadores que a repetem à exaustão e tornam moderno o antigo. Paradoxo de ser o ontem mais moderno que o hoje. O que arregala os olhos e arrepia as pilosidades dos corpos é a vaidade refinada de escritores, cientistas e outros pensadores. Na mais lamacenta das fluorescências da luz, vivem encandeados com a sua própria beleza. Criadores e criaturas. Narcisos que resistem ao mergulho nas suas luminosidades reflexas. Quem nunca os viu e ouviu e que por eles foi submerso pela áurea divina, que atire a primeira pedra. Pedra de luz, está claro. Meteorito atravessando a sombra do eleito. Suprema vontade de rir, de enlouquecer com a volúpia de ser. Não há escória que resista a tanta luz do metal em fogo. Fundido e fodido. Criaturas nadando na sua própria espuma inútil. E, destes todos, é o escritor o mais altivo e arrogante: veste-se de palavras inúteis, cria um mundo paralelo onde navega, flutuante e besta, no caminho da glória. É certo que o ridículo e a pobreza moral matam. Mas nem a morte os detém. É a eternidade que os motiva, que os anima e conduz. Quando são bons e criadores de excelência, esquece-se o homem e vangloria-se a obra. Quando medíocres, dão dó, pena. Quase todos se autonomeiam de humildes. De apaixonados eternos. Contradições que nem compreendem: a humildade é, hoje, um valor inflacionado e precioso; a paixão, por natureza – e definição – efémera. São todos solitários, como amam a solidão!, veneram a arte e a cultura, o silêncio, oh, o silêncio!, a amizade, o vinho, as mulheres, e os homens, a natureza, a viagem, a margem, ah, a marginalidade divina!; a volúpia do abismo, as requentadas sombras da noite, os tempos de criança, a lembrança dos melhores pais do mundo, ou piores, que vem a dar no mesmo, o primeiro amor, os cheiros da terra quando chove, a eterna juventude! A amizade – a amizade tornada labirinto e leito de vida e de morte, amizade que azeda e vira guerra sem tréguas e fratricida na hora do confronto. Do confronto das ideias e conceitos estéticos. Ninguém aceita ninguém. Ninguém aceita o outro enquanto outro. Se fores outro iguala a mim, és um outro aceitável e meu.

Autoria e outros dados (tags, etc)

publicado às 14:51

a vida sem retorno

por vítor, em 14.12.17

As folhas das árvores cumprem o seu destino. Eu cumpro a vida. A vida sem retorno. Por entre o murmúrio das vozes polifónicas da consciência esculpida no bloco inatingível do passado, talho a viagem sem destino que o tempo transporta para o fim do futuro. O chão pisado fermenta. Quando pensas no corpo – no teu corpo -, abre-se uma cratera de sonho no desejo que te enforma e conduz. Uma exterioridade donde te contemplas como se fosse uma entidade estranha e o teu corpo um fragmento do desejo dos outros. No silêncio da tarde, apodreces e ficas sossegada vendo o futuro a esvair-se nas memórias esquecidas.

Autoria e outros dados (tags, etc)

publicado às 14:49

um menino sábio

por vítor, em 14.12.17

Vendendo poesia nos mercados de gado, poemas gordos,
Anafados, cheirando a suor, mancha penetrando
O clamor da clientela, levantando poeira espessa
No chão que as palavras pisam.
- olha!, que animais estranhos, comentou uma criança curiosa.
- Cala-te!, cala-te! ou levas, não vês que as palavras se assustam!,
Cortou a mãe. São tão sensíveis as palavras!...
- são tão lindas as patinhas que as transportam, aventou o filho.
- Não vês que não são patinhas, são sinais do vento agreste
Roçando as proas dos navios qua as transportam, navios sem rosto
Atravessando o sangue vomitado em segredo pelas mulheres
Que cobrem as chagas escarlates, as escaras que balançam nas fezes dos animais.
Animais sem imagem, peados e prisioneiros das metáforas, caminhando pesadas,
Aspergindo as clientelas voláteis com o seu odor silencioso. Palavras
Náufragas nas peles suadas, náufragas na lama paralisante dos dias,
Nos lábios acorrentados à voz púrpura dos rebanhos.
- mas, continuou a criança já exausta, eu só vejo bichos com tabuletas ao pescoço.
Tabuletas com preços e quilos. Tantas tabuletas, mãe!
- Tabuletas, tábuas, palavras. Conceitos indissociáveis. Tudo o que resta será
Pensado outra e outra vez como o tudo que o Álvaro de Campos queimou com um cigarro,
Que o tempo lhe concedeu, o tudo que não era senão a tabuleta do gerente da Tabacaria.
Olha como as palavras se encostam umas às outras como se o amanhã fosse hoje 
E o mar fosse um só. E o infinito afinal não passasse de um sonho que o pensamento
Não faz existir. Foda-se toda a interpretação das palavras, das tessituras da linguagem
E dos malditos que a escarram nas noites de solidão. E blá e blá e blá. E outra vez, blá.
Um dia, que o futuro arrastará até nós, as minhas palavras serão tuas
O menino, sábio, tinha adormecido com o mugir das vacas.
(…)

Autoria e outros dados (tags, etc)

publicado às 14:48

um casaco negro

por vítor, em 14.12.17

Agora mesmo, no arame laminoso:

Saio de casa com um casaco negro comprado na zara,
Um casaco de escritor barato e com muitas gavetas, e entro pela rua
Assobiando knockin on heaven's door do dylan. Vou a um festival literário.
O casaco negro está-me largo, mas dá-me um ar gingão, e assim vou
Deslizando na calçada gasta da velha rua. Piso merda de cão, e sou só eu
Que avanço na escuridão dos dias sem regresso. Hotel pago e comida
Num restaurante manhoso, abraços e beijos na passarada envolvente, 
Selfies para sempre com camaradas da arte das palavras e, com sorte,
Com alguma estrela do firmamento distante. Sorrio. O casaco assenta-me tão bem!
Sorrio a quem passa e quem passa pensa que é um doido que passa.
- Com um casaco daqueles…
Espero o autocarro 16 no fim da rua. É que eu vou da Venda Nova e o 16
Começa mesmo ali pelas Portas de Benfica. Foda-se! Não me falem de Benfica que até fico embriagado. 
Da bola não percebo nada, mas sofro por esta merda de clube que só
Me dá desgostos e arritmias.
Cá vou eu no 16 feliz como uma pedra atirada ao ar que cai na cabeça
Duma, foda-se que a minha amiga Ladislaia não gosta nada que se escreva duma;
Digo, de uma criança. O meu casaco ocupa dois lugares no autocarro: o meu
E o que devia de ser da senhora que vai agarrada ao varão vertical do corredor. 
O varão é de metal prata incandescente e faz-me lembrar, ai a puta da memória 
a atirar-me sempre para lugares intangíveis e escorregadios, quando fui com mais
três poetas a uma casa de putas com um varão no meio do salão. Estávamos tão bêbedos
que até eu dancei no varão. E olhem, aqui que ninguém nos ouve, que até tinha jeito .
O pior foi quando uma menina, bem engraçada, por sinal, me meteu a mão num lugar
Que me faz corar só de pensar onde. Os três poetas a gozar o pratinho e eu alumiando a casa 
Com as minhas vergonhas. Mas, foda-se, cá vou eu no autocarro 16 com o meu casaco
De escritor que, diga-se em abono da verdade, me fica um bocadito largo...
Miro-me no vidro da viatura e pareço mesmo quem sou: um palerma vestido de escritor
A caminho de uma festa de palermas vestidos de escritores.
Saio numa paragem qualquer. Knock, knock on the heaven`s door. O casaco esvoaça na brisa
E aperto-o. Como é largo deixa entrar na mesma o frio da maresia que se alevanta.

Cativa 23/11/2017

Autoria e outros dados (tags, etc)

publicado às 14:45

uma camisola ensanguentada

por vítor, em 14.12.17

ceci n'est pas un poème

Da janela escorria uma camisola ensanguentada.
Pingava na terra encharcando o vazio
Que se assomava por detrás das casas.
Três facadas na carne rasgando
Os tecidos nauseabundos, expulsando
O sangue em golfadas efervescentes.
A minha mãe já não mora aqui e o sangue,
Que também é o dela, cai no pântano
Morno cobrindo o chão da cozinha.
A camisola envenenando as ervas daninhas,
Alimentando os vermes que me consomem o corpo.
Agarrem-no!, ecoou como lâmina zurzindo
O ar brutal do bairro sórdido, não há crime
Sem castigo!, berrou o homem sem significado
Que assistia a tudo.
Nunca um crime foi sentido por mim
Nas fronteiras da solidão, respondi eu
Cobrindo a retaguarda.
Ratazanas sem compromissos escapuliram-se
Nas sarjetas iluminadas pelo odor dos enjeitados.
O vizinho do 2º dtº deu a primeira facada.
As outras que me rasgaram a pele e trincharam os ossos
Foram, no calor da refrega, atribuídas a incertos.
Conhecidos mas não identificados nas complexas
Poeiras que ensandeciam a tarde. A camisola
Aspergindo o espetro rastejante da pobreza,
Nunca ninguém fugiu de si próprio deixando
Um rasto de informação apelando
Aos caçadores de infinitos
O odor que os levará ao covil da presa,
Ao definhar do ritual do fogo e do sangue
Que rege o ordálio crepitando nas mentes
Experimentadas no silêncio, na viagem
Interrompida por deus.
A multidão rumina dissolvendo as persianas
Ululantes das personalidades elementares.
O crime percorre as ruas por entre
Conceitos duvidosos e ideias lancinantes
Abandonadas pelos que temem os estrangeiros
Nascidos entre os nossos. A matéria
Que compõe os heróis regurgita no princípio
Da noite, cadinho onde se fundem as ilusões
E o crime assume a vertigem da virtude
Incontestável e una.
O sangue que brotoeja das feridas escancaradas
Sacraliza as ruas por onde prossigo procurando
A caverna dos prodígios labirínticos, a degeneração
Do corpo que reproduz o regresso ao fim.

Duma janela apontando a noite pinga
Uma camisola ensanguentada.

Vrsa 13/11/12

Autoria e outros dados (tags, etc)

publicado às 14:43


Mais sobre mim

foto do autor


Subscrever por e-mail

A subscrição é anónima e gera, no máximo, um e-mail por dia.


Arquivo

  1. 2023
  2. J
  3. F
  4. M
  5. A
  6. M
  7. J
  8. J
  9. A
  10. S
  11. O
  12. N
  13. D
  14. 2022
  15. J
  16. F
  17. M
  18. A
  19. M
  20. J
  21. J
  22. A
  23. S
  24. O
  25. N
  26. D
  27. 2021
  28. J
  29. F
  30. M
  31. A
  32. M
  33. J
  34. J
  35. A
  36. S
  37. O
  38. N
  39. D
  40. 2020
  41. J
  42. F
  43. M
  44. A
  45. M
  46. J
  47. J
  48. A
  49. S
  50. O
  51. N
  52. D
  53. 2019
  54. J
  55. F
  56. M
  57. A
  58. M
  59. J
  60. J
  61. A
  62. S
  63. O
  64. N
  65. D
  66. 2018
  67. J
  68. F
  69. M
  70. A
  71. M
  72. J
  73. J
  74. A
  75. S
  76. O
  77. N
  78. D
  79. 2017
  80. J
  81. F
  82. M
  83. A
  84. M
  85. J
  86. J
  87. A
  88. S
  89. O
  90. N
  91. D
  92. 2016
  93. J
  94. F
  95. M
  96. A
  97. M
  98. J
  99. J
  100. A
  101. S
  102. O
  103. N
  104. D
  105. 2015
  106. J
  107. F
  108. M
  109. A
  110. M
  111. J
  112. J
  113. A
  114. S
  115. O
  116. N
  117. D
  118. 2014
  119. J
  120. F
  121. M
  122. A
  123. M
  124. J
  125. J
  126. A
  127. S
  128. O
  129. N
  130. D
  131. 2013
  132. J
  133. F
  134. M
  135. A
  136. M
  137. J
  138. J
  139. A
  140. S
  141. O
  142. N
  143. D
  144. 2012
  145. J
  146. F
  147. M
  148. A
  149. M
  150. J
  151. J
  152. A
  153. S
  154. O
  155. N
  156. D
  157. 2011
  158. J
  159. F
  160. M
  161. A
  162. M
  163. J
  164. J
  165. A
  166. S
  167. O
  168. N
  169. D
  170. 2010
  171. J
  172. F
  173. M
  174. A
  175. M
  176. J
  177. J
  178. A
  179. S
  180. O
  181. N
  182. D
  183. 2009
  184. J
  185. F
  186. M
  187. A
  188. M
  189. J
  190. J
  191. A
  192. S
  193. O
  194. N
  195. D
  196. 2008
  197. J
  198. F
  199. M
  200. A
  201. M
  202. J
  203. J
  204. A
  205. S
  206. O
  207. N
  208. D
  209. 2007
  210. J
  211. F
  212. M
  213. A
  214. M
  215. J
  216. J
  217. A
  218. S
  219. O
  220. N
  221. D
  222. 2006
  223. J
  224. F
  225. M
  226. A
  227. M
  228. J
  229. J
  230. A
  231. S
  232. O
  233. N
  234. D