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diante dela perdi a cabeça.
foi terrível
o chapéu foi-se com ela...
lisboa 25-03-82
Normalmente atribuído a gentes que se destacam no campo das artes, este ano o Prémio Cativa vai para o ciclista Rui Costa. Vencedor de duas etapas na Volta à França, vencedor da Volta à Suiça, pela segunda vez consecutiva, e campeão do mundo de estrada, contribuiu para dar alguma alegria ao povo portugês em tempos de profunda crise. Nestes dias sombrios e difíceis, com humildade e simplicidade, sem divisionismos, trouxe-nos sorrisos e alegrias que iluminaram as sombras...
Hei, you, gritou o cão. Aquele bonacheirão de cor de pêssego a quem tinha saído o euromilhões.
Do outro lado da rua, a galinha que perdera um olho na guerra olhou-o franzindo o sobrolho.
O que é que se passa?, condescendeu cedendo à simpatia.
Queres fazer-me um broche?, atirou o outro sem constrangimentos.
Não fosse a arrogância com que o perguntas e o desconhecimento que nos separa, e responder-te-ia que com o bico que me dá brilho às faces poderia ser perigoso executar tal desejo. Assim, só poderei, e digo isto com toda a sinceridade, mandar-te tomar no cu.
Dito isto, continuou o seu caminho, bico apontado ao futuro e dois dedos fora dos sapatos.
Foda-se, ganiu o canídeo, já ninguém respeita o dinheiro. E ainda dizem que é o sistema capitalista o principal responsável pela crise. “Tomar no cu”, repetiu baixinho, “tomar no cu”, quem não tem o dito não o devia invocar. A cloaca não dá tesão. Irei gastar o meu pecúlio para outras paragens onde a simpatia me possa dar dividendos. Depois não se queixem da fuga de capitais.
E lá foi, debaixo do céu que o alumiava.
M. Gordo 19/12/13
Não creio em silêncios
crus, em conversas iluminadas
calçando a brutalidade dos
parágrafos cadastrados.
Não creio nas palavras grávidas
atiradas aos pesadelos
dos interlocutores,
não posso convidar quem parte
a loiça de minha casa
e amola lâminas
no fundo da consciência
solúvel, na poeira dos
caminhos.
Aceito o desafio das cordas
envoltas em arame farpado,
golpeando as sombras, as
fímbrias dos edifícios
castrados, a limpidez
dos corpos omissos fedendo
a cadáver exibido nas
cerimónias panegíricas
latindo na agonia dos
políticos imberbes
e escorregadios
que as noites abreviam
no sôfrego espetáculo
das multidões corruptas,
envenenando o cemitério
das idiossincrasias
incandescentes.
Não creio nos sonhos
Que se erguem da noite
Perpétua.
M. Gordo 5/12/13
Lutando contra os elementos. Andrajoso mas sempre em pé....
Como estás mudada, disse-me o vizinho enquanto se regalava com a visão ímpia do meu umbigo.
Rastejei na planície do fogo, atropelando as respostas que a denúncia do peixe anunciavam, interpelando de chofre o cão sem pulgas internado há séculos no manicómio dos gritos impossíveis.
Onde estavas quando precisei de ti, quando o vento soprou do quadrante das sensações inúteis?
O vizinho voltou à carga:
- Como te sentes antes de entrar no corredor sombrio que leva ao coração?
Fiz-me desentendida e tricotei, compulsivamente, uma camisola de lã de minotauro. Senti-me lâmina rasgando a noite, poeta partilhando o sangue corrompido, fábrica de invernos indisponíveis.
Não encontrei ninguém que gritasse a tristeza das palavras cruxificadas em páginas amarelecidas, ninguém que se mostrasse triste com a ausência honesta e fria das catacumbas. Deixo-me ficar no porto à espera de um navio fantasma. Era o dia das oito espadas cindirem o que restava do país lamacento, das cobras, o dia da emergência do mal, dos desejos iniciais.
Quando o primeiro navio se aproximou do cais onde adormeci exausta, um peixe, vindo do fundo das trevas do abismo, de cabeleira ensanguentada, escorrendo pus viral, assomou à tona das águas e disse-me olá.
Acordei estremunhada e sorri. Quando regressou às profundezas do mar azul, pareceu-me ver nele o meu vizinho acenando à castidade efémera do desejo.
M. Gordo 10/11/13
"últimos"
Página do dia:
Na rua, uma aragem fresca varria as ruas antigas, os transeuntes que as ousavam sulcar nos primórdios da noite derradeira. Como navalha riscando a pedra. O alcatrão amarelecia à luz fosca dos candeeiros generosos, acolhendo as sombras no vazio da viagem. Atravessamos o Largo da Misericórdia e dirigimo-nos, autómatos na noite incompleta, para o tasco da memória antiga. O Estádio estava, àquela hora incomum, com dois ou três clientes dispersos pelas mesas de sempre. Dispersos pela vida de nunca. Bebemos dois medronhos ao balão e zarpamos, regressamos à luz que amarelece. Pouco faláramos até aqui. Nem uma palavra sobre a tragédia que nos levara um ao outro. Ao reconfortável silêncio dos dias de antanho.
Penetramos no Bairro Alto à antiga. Como o fizéramos sempre. O álcool a latejar nos pensamentos. Felizes e ausentes da realidade. Com a certeza de que não encontraríamos ninguém. Ninguém conhecido como nos tempos da Faculdade. Nesses tempo gloriosos, sobretudo aos sábados, nas ruas, nos bares, nas discotecas, nas tascas, a noite era um templo onde os amigos festejavam a juventude e a loucura. Tropeçávamos em gente conhecida a cada esquina, a cada soluço do tempo. Escorriam as horas em conversas intermináveis, abraços e risos interrompiam a noite e estabeleciam ritos e rituais de aproximação à eternidade. Éramos infinitos e sentíamos o todo como partículas integrantes da imensidão do cosmos. Nas noites intermináveis fortaleciam-se laços de amizade para sempre, procurávamo-nos ansiosamente. A nós e ao outro para sedimentar a identidade do futuro. O sexo era um pretexto para amar. Nada se interpunha entre a alegria e a tristeza. Nestes tempos pré SIDA, a sexualidade impunha os ritmos à vida e a efemeridade dos sentimentos parecia não contender com a força de ir ao encontro das realidades por inventar. Sex and drogs and rock n rol. O que não entendíamos era o que nos moldava a sagacidade da rebeldia. Até ao fim das madrugadas, as dúvidas e os impossíveis fundiam-se numa massa fluída e difusa morna e adocicada, qual sopa genética inicial, penetrando os corpos enlameados e sem fronteiras. Noites paralelas ao mundo que bramia lá fora, enquanto o resto, que era maior do que o todo, medrava silenciosamente nos interstícios do dever. A dança. Ah! A dança! Expulsava os demónios e os deuses e, contaminando o desassossego do conhecido e previsível, fazia emergir do nada um novo sagrado a cada palavra. A cada gesto. O gesto que veio, ainda antes, do verbo. Hierofanias volúveis e sincréticas recriando a formação do mundo. O mundo em si mesmo, uno e diverso como o vazio das tempestades. Todos éramos deuses e não sabíamos. O que para trás ficava, para trás sedimentava nas profundezas dos socalcos do esquecimento. A música amparava o que não tinha sustentabilidade, era a continuidade do nós. Proibido proibir, façam amor não a guerra, no nukes, sea sun and sex, amor livre, maios e depois abris. Um plasma majestoso inebriando as valetas nauseabundas da sociedade, as paredes sensíveis da cultura revelada e infecta.
Agora, desconhecidos num mundo estranho, penetramos o tempo injetando de melancolia a noite. Libertos pelo álcool e pela dor – pelo reverberar dos tremores da alma -, avançamos pelo silêncio do passado. Dos muros antigos, da cal escalavrada, da argamassa exausta deslizam monstros tenebrosos, figuras emergentes das sombras, dos desfiladeiros inóspitos do amor e do ódio, da raiva, envolvendo os transeuntes e conduzindo os seus passos. Arrastando-os na nebulosidade da luz noturna. Ninguém escapará aos demónios da noite, as consciências rastejantes avançarão na lama do devir, sinuosas e uivantes, as cavernas hiantes abocanharão os incautos e os crentes: as peripécias que o sonho comporta se a agonia refrear os impulsos do coração contrafeito. Viajamos no passado, percorrendo o futuro por cumprir. As memórias são, agora, correntes ascendentes ao encontro do delírio. Disforme, enleia factos e fantasias.Tudo não passará de uma construção de realidades pré-cartesianas. Nada existe para lá do sonho. Voltamos atrás, ou melhor, tentamos voltar atrás, percorrendo caminhos de antanho. Pisados por outros pés desenhando as mesmas pegadas no pó rarefeito. Mas o que procuramos não nos espera onde seria expectável. Há locais que desapareceram na voraz fabricação do tempo. Outros, julgando vencer a compressão do que existiu no condomínio de mentes paralelas, ainda exibem vestígios do passado entranhado no esquecimento. A nossa demanda confunde-se com uma arqueologia dos sonhos, uma procura no infinito da frase. Por cada socalco que atinges, novo abismo se abre. O nevoeiro que vem e tudo cobre, faz-te voltar atrás. Não entendes um degrau quando a escada se estende pela lonjura da memória, sem pontos de referência onde te apoies. Se fosse possível atravessar a densidade das memórias, os destroços espalhados pelo caminho, constataríamos que o mundo conhecido de uma vida contém todo o passado da humanidade, sendo que esse passado seria, sem dúvida nenhuma, o cosmos que tudo comporta e manipula.
Entramos no Arroz Doce.
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