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Longe da papelada do dia a dia, até pareço feliz...
Como já aqui tinha referido, o trabalho não me entusiasma por aí além. Mas o que me revolta, na realidade, é fingir que trabalho...
O grande pintor Degas muitas vezes me contou essa frase de Mallarmé, tão justa e tão simples. Degas às vezes fazia versos, e deixou alguns deliciosos. Mas constantemente encontrava grandes dificuldades nesse trabalho acessório de sua pintura. (Aliás, era homem de introduzir em qualquer arte a dificuldade possível.). Um dia disse a Mallarmé: “sua profissão é infernal. Não consigo fazer o que quero e, no entanto, estou cheio de idéias…”. E Mallarmé lhe respondeu: “Absolutamente não é com idéias, meu caro Degas, que se fazem os versos. É com palavras.” (VALÉRY, 1991, p. 207-208).
às vezes aparecem na cidade
figuras recortadas na paisagem brusca
retirando da luz a sombra que cresce
na calçada pardacenta
um homem senta-se numa cadeira
azul e o vento fustiga-lhe o rosto
(quantas vezes já o dissera) imaterial
são três horas na tarde e o crepúsculo
assoma-se por detrás da noite
uma mulher, que o sopro da ventania
não incomoda, observa o que as horas
aspergem no desassossego dos sentimentos
criptados, na voragem das palavras cruéis
atravessando a calmaria que a envolve
aproxima-se da cadeira azul enquanto
o relógio da torre açoita o ar diverso
debruça-se, suavemente, sobre a cadeira
e beija o cabelo revolto do homem sentado
o relógio repete a linguagem do tempo
três vezes na cidade engolida pela sombra
as árvores despem-se para enfrentar o frio
o beijo atira o homem até aos confins de si mesmo,
até onde a solidão desaparece e o mar morno
contorna o emergir das palavras
a mulher reergue-se do beijo
e desloca-se imparável para o fim da rua
onde a espera a eternidade
a noite cobriu de trevas a cidade
e o homem renasce na esplanada
de cadeiras azuis, bebendo cerveja
com figuras que convergem no
esquecimento da dor
o caminho divergente acontece
quando as rédeas do afecto
não resistem ao que materializa a solidão
contra a tempestade ergues a dor.
MG 20/12/2010
A editora 4 Águas apresenta a nova obra de António Ramos Rosa. Prosas Seguidas de Diálogos. Uma pequena, independente e quase desconhecida editora do Algarve incendeia o panorama editorial, editando o maior poeta português vivo.
Anselm Kiefer
no primeiro despertar da sombra/ instalou-se um pesado silêncio/ nos socalcos da memória/ uma clara escritura invadindo/ os sedimentos frios do esquecimento.
todos os insetos da floresta/ sublinharam os nomes que fermentam/ no vazio do plural abstrato,/ a inveja necessária e vã apenas/ excetua os escaravelhos dormentes,/ companheiros dos aldeãos lilases,/ répteis no papel de ourives/ desenhando a filigrana da pele/ nas luzes copiadas e biformes./ é nesse momento que entram as máscaras/ retiradas da gaveta em flexões/ para assistir à partida das frases/ assassinas do covil dos ananases.
um homem comprou um jornal/ por um dólar e o capitão foi almoçar/ com o general. todos os nomes/ verdes e esquisitos almoçaram à parte/ na esteira que confundia a parcialidade/ do chão plural.
o capitão, órfão dos lilases incompletos,/ virou a folha do livro e o barril/ de pólvora iniciou a invenção que a mulher-aranha/ apresentou na noite confusa.
o general barrava o pão com chocolate/ todos os nomes e cada um deles/ desapareceram da frase registada/ na pele da tecedeira,/ tatuagem de bigode ornamentando a boca de vidro.
um moço e uma mulher saltaram o muro/ na ruela vazia para uma/
ilha fantástica na periferia do carnaval enquanto/ embrulham presentes em papel de fogo.
quando a personalidade do assassino/ foi desvendada todos, insetos, homens,/ mulheres e vegetais comungaram do/ ressentimento paradigmático...
não há perguntas difíceis, só convites/ exclusivos par dançar/ o silêncio da sombra.
Era certamente eu que ali ia. Não podia haver dúvida alguma, pois o homem que atravessava a tarde gelada tinha, exatamente, a mesma forma estranha de caminhar. Ao longe, ainda hesitei. Mas quando nos cruzámos, na calçada luzidia, perdi toda a esperança de ser outro. De sermos outro. Quando os nossos olhares tristes se fixaram no nosso olhar, a resposta para muitos anos de procura surgiu do nada e emprenhou a nossa consciência apatetada: o eu que procurávamos era um nós estranho que nunca entenderamos. Separámo-nos como se a vida fosse um longo corredor que nos conduz ao vazio intangível. Qualquer que seja o sentido da vida, é para lá que caminhamos.
Esta cidade mata-me (literalmente...).
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