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Isto está mesmo muito complicado. Já nem se consegue ser politicamente correcto. Ou melhor, o politicamente correcto está a virar incorrecto. É um pouco como a paixão. Já repararam que toda a gente vive em estado de paixão... é caso para dizer que já ninguém vive apaixonado. Sendo a paixão um momento de excepção, se se está em permanente estado de paixão esta eclipsa-se. Mas voltemos ao politicamente correcto.
Fui visitado este cálido Verão por dois amigos que não via há 15 anos.(E aqui começa a minha consciência politicamente correcta a, desculpem-me, "correctar"). São os dois homossexuais e vivem juntos desde que os conheço. Continuam juntos até hoje.
A tal minha conciência: se fossem um homem e uma mulher não escrevias posts em blogs, pois não? Certo, respondo.
A tal consciência: se fossem um homem e uma mulher não estavas a pensar, tanto tempo juntos? Confesso que o estava a pensar mas, se no caso abordado em cima não tenho defesa, aqui vou ripostar.
Minha rica consciência não se trata de avaliar o tempo de vida de um casal homossexual. Trata-se de uma questão de género. Explico-me: sendo os homens mais dados a comportamentos promíscuos (não consegui melhor termo) a longevidade de um casal homem/homem, mais volátil, poderá ser responsável por este meu pensamento. Possivelmente se fossem duas mulheres nunca teria ousado pensar desta maneira.
Escusado será dizer que a minha dita consciência já está a maltratar-me com uma murmurante vozita, os homens mais promíscuos?! És capaz de me fundamentar melhor essa teoria reacionária e ...
Retirei-me apressadamente. Ainda vou conseguindo afastar-me da minha consciência quando ela se torna mais chata que a potassa.
Errare humanum est. Desculpem lá o meu fraco latim.
Passara um ano sobre a morte da mulher de óculos escuros sem lágrimas. Era a sua primeira visita.
O Outono descia as persianas. O Universo rodopiava, sem pressas, em volta do cemitério.
Subiu a colina suave da sepultura e sentiu os pés descalços a enterrarem-se na terra. À procura da raiz.
Há anos, quando repousava no seu regaço, sentia as mãos tremer de gozo. Lembrou-se das galochas que sempre quisera ter e nunca teve e que os rapazes da rua sempre tiveram.
Olhou o céu à procura de encontrar Deus a sorrir. Não existe. As beatas consumiram-No . Existe. Só existe o que se pode consumir.
Sentiu as mãos tremer de gozo. Os pés terrados .
Bruxas no sabat sem fim aproximaram-se do cemitério. Pensou nos mortos ricos e nos mortos pobres, que foram vivos pobres e vivos ricos. A loucura passa pela maior das normalidades quando tem um espaço onde se projecta. Só quando o pano de fundo desce, a loucura cai à rua: é doido varrido, vê pulgas na opa de sua majestade, quer saudar o infinito, satisfaz-se no vazio. A mais grave.
As viúvas místicas atingem orgasmos na penumbra das sepulturas.
Os espaços sagrados aparecem quando os seres do Além se fundem aos do Aquém e aqui começa o sabat. Fantasmas e vice-versa, num só, debatem os mais prementes problemas da Filosofia contemporânea.
Mãe, por que me abandonas-te? Acaricia-me os pés. Faz-me tremer as mãos. Vamos construir um mundo porreiro sem carimbos na consciência.
Parecia que o tempo não passara mas o Sol caíra atrás da parede do cemitério e como era preciso atravessar o ritual da morte para participar no sabat, o coveiro, homem devidamente encartado para tal, expulsou as almas do outro mundo para o outro mundo.
Como é possível dar 48 voltas ao Sol sem nunca ter ouvido o Requiem Alemão de Brahms ?
Finalmente fruí-o integralmente ontem. Absolutamente fantástico!
Brahms Ein Deutsches Requiem
Arleen Augér (soprano)
Richard Stilwell (barítono)
Robert Shaw (Atlanta Symphony Orchestra and Chorus )
Telarc Digital
Sabia que nunca mais iria enterrar ninguém. Via- se pregado na parede do cemitério rodeado de aranhas que dançavam titubeantes e macabras.
Contra o que sempre pensara, não morreria velho e foi- se despedir da espanhola com quem dormira as duas últimas noites.
Àquela hora os cães dormitavam nas sombras, abanando o rabo à sua passagem.
O presidente da junta tinha-o prevenido três semanas antes que a profissão de coveiro era ingrata: - o osso é duro de roer. Mas o importante é que há mais marés que marinheiros.
Em Lisboa, nos tempos de casado, tivera ofícios duros. Mesmo assim sempre pensou que morreria velho. Nem mesmo a separação da família o desesperou, e a vida era vivida com um sorriso interior, de parietal a parietal.
Porém, o aviso preocupou-o.
Caminhou junto à parede para aproveitar a sombra dos beirais. Torneou um barco semi desfeito de saudades. No poial da porta da espanhola estava, despreocupado, o marido desta. Despreocupação de corno manso, pensou.
Atirou-lhe dez tostões. Para a aguardente de figo.
O canavial murmurava sons de juventude, levemente embalado no sueste. A velha nora espiava por cima do casario árido vindo do deserto.
Afastou a rede mosquiteira da porta e entrou no escuro antro dos pobres. Fixou os olhos, sem medo, no cristo ameaçador do fundo, e releu o prato azul violeta: " o cabelo que foi loiro e depois se debotou, lembra alguém que tinha oiro e em prata se transformou".
- Romualda , chamou baixinho.
Os ladrilhos libertavam uma frescura agradável a alfazema. Entrou no quarto e viu-a estendida na esteira, completamente nua. As dobras da barriga pendiam-lhe até ao chão, subindo e descendo ao ritmo da respiração pesada. Não acordaria mesmo que um tubarão entrasse na ria e comesse metade dos homens que dentro de água esquartejavam os atuns do copejo da madrugada. Ficaria para mais tarde. Muito mais tarde...
Procurou nos bolsos das calças um cigarro, e foi encontrá-lo num da camisa. Acendeu-o ainda dentro de casa e saiu decidido ladeira acima em direcção do cemitério.
No caminho entrou na tasca do Marcolino - estrategicamente situada entre os mortos e os vivos - que dormia com a cabeça sobre o balcão. Balcão de amendoeira de amêndoa dura, onde se apoiavam as mais diversas vidas, desde o começo dos séculos.
Serviu-se a si próprio de medronho. Era a única bebida que, no estio, lhe refrescava as tripas.
As aranhas começaram a movimentar-se no seu cérebro dando-lhe uma sensação de inesgotável prazer.
O Marcolino mudou de posição, disse alguma coisa arranhada, e continuou ouvido colado aos sonhos infindáveis do balcão. A venda era impotente perante o calor que se ia instalando sem pagar.
Mais um medronho e saiu levando consigo a garrafa. Pagaria depois. Muito depois...
"Medronho puro a bebida do futuro", rótulo sem cor sobressaindo da solidão das ruas escaldantes.
"Nós ossos que aqui estamos pelos vosso esperamos". Entrou. Dirigiu-se à cova que começara a abrir pela manhã. Ajoelhou-se diante dela murmurando álcool para as entranhas da Terra.
Sem que desse por isso, da catacumba do General, saiu um esqueleto com galões a condizer, armado de martelo e pregos. Com o queixo aprumado, protuberante, e rodando sobre os calcanhares a cada sepultura, chegou-se ao Zé que flutuava a um palmo do solo. Deu-lhe o braço e foram os dois até ao lado Norte do cemitério. Aí, o esqueleto general, pregou o esqueleto do inferno na parede caiada, peça do puzzle infinito da calmaria.
As aranhas, agora livres, saíram à rua semeando panfletos incendiários aos transeuntes.
Duas árvores, frondosas, coraram de cumplicidade.
Estamos no 29º conto do livro "Transeuntes". Vão ser 33. Aproximamo-nos, portanto, do Fim.
Descansem os míseros leitores (míseros de poucos) que "Transeuntes" é apenas uma talhada de uma trilogia que me propus editar por esta via.
Seguir-se-ão um livro de poemas (ainda sem título) e, finalmente, e se o conseguir, o supra sumo da obra literária: um romance. Este último, sem título e sem uma só palavra mas com muitas ideias.
Comecei por desprezar a quantidade de leitores mas a angústia de não saber se, no universo cibernético profundo e infinito, era lido, levou-me a recorrer à ajuda de um contador de visitas.
Não ajudou muito mas pelo menos passei a saber que não viajo só nesta aventura (ia escrever odisseia) e que cheguei a alguém.
Nunca incomodar é a forma mais bonita de atravessar o horizonte. Se quiserem digam qualquer coisinha...
Saltei em terra iluminado por uma sensação de felicidade que me entrava pelos pés e fluía por todo o corpo. Subia às estrelas: dez contos no bolso. Cinco passageiros até Marrocos e viagem de volta favorável. Kiff para todos, mesmo os inimigos de ocasião.
A tasca do Quim efervescia: o Rato, o Califa, o Ai Que Lindo Polvo, o Zeca Barbinha, todos.
A coragem paga o vinho e a aguardente e mesmo o poejo, até a tasca fechar. E fechou tarde, embriagada.
Os guardas-fiscais passaram armados até aos chapéus.
Ah! Ah! Ah! Sorri abundantemente.
Eu era uma alucinação imensa rebolando na praia, e quando o Sol já queria alargar os horizontes, dirigi-me a casa dançando melodias árabes por entre vagas alcoólicas. Alterosas.
Entrei em casa com o meu melhor amigo (como se o meu melhor amigo não fosse o mar), que me guardou o dinheiro, das minhas vidas, no bolso da miséria e saiu para o céu em labaredas.
Viajo até a solidão se dissipar no atrito do desespero. Aí celebro a infância desmembrada, de amor. Desta vez o sonhar é uma sensação demasiado real para causar dor, demasiado rude para convidar ao reflexo comum do prazer.
Na estrada há um barco angustiado ( talvez bêbado, como disse o outro ). Centenas de pirilampos jazem nos cadáveres sem apodrecer. A ti envio os meus dedos vestidos de arlequins esverdeados. Não és um desafio porque sabes demais das incertezas do infinito.
Um ser embriagado deu à costa. Bebeu o mar e caiu na calçada, calada, por onde namoriscavam peixes vestidos ao contrário. Ainda vi que eras uma alforreca desmaiada.
Vi- te passar perto de um ser que parecia engolir os destinos. Nem as promessas do homem mentiroso seriam tão vãs. Ele era um deus razoavelmente desprovido de sentimentos sociais.
A mentira é tudo, sendo nada é fogo ateado à imaginação para consumo dos vizinhos. Sem a mentira há medo. A suavidade é a possibilidade de construir o passado em liberdade e acabar de vez com o futuro.
Vais comover o farol das trevas! Entrega-te patrão das sereias iluminadas!
A Europa é um paraíso de opressão.
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