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Devo, em primeiro lugar, assegurar-vos que este relato é real e verdadeiro. Sim, porque há coisas reais que não são verdadeiras e verdadeiras que não são reais. A bizarria do que contarei em seguida poderá, sempre, fazer torcer o nariz a quem vier a ler essas palavras. Eu próprio hesitei bastante em alinhavar a história que no final do último Verão presenciei com os meus olhos e me envolveu até ao âmago do meu ser. No entanto, por imperativos morais e éticos, não poderia omitir os fatos que abalaram, nesse dia de calmarias, os meus fundamentos filosóficos.
Agora que o frio do Inverno se apoderou dos corpos, alerto já, os possíveis leitores, para os danos intelectuais irreversíveis que a leitura do seguinte relato pode vir a causar. A escritura foi lenta e dolorosa e consumiu a parte da minha alma que tinha resistido ao vórtice dos acontecimentos que aqui partilho. A vida passou a ser outra vida. A decadência psicológica, já abalada pelo vivenciado, acelerou com a fixação do texto maldito que a minha mão lavrou. O medo apoderou-se de mim e pensei não ter forças para o finalizar. Lutando contra forças tenebrosas e ígneas levei a cabo a minha tarefa incontornável e, de certa forma, final.
Aqueles que não souberem transportar a dor que os desligará do passado e atirará, sem dó, no deserto da existência, sem qualquer possibilidade de retorno, deverão deixar, nesta última fase da apresentação, a companhia destas palavras. Minhas senhoras e meus senhores, arregaçai as fímbrias das vossas almas que vamos atravessar o inferno.
O Sol escaldava no final daquela tarde de Verão. A música da paisagem aspergia uma chuva de emoções na sonolência dos que vagabundeavam na cidade adormecida. Os cães procuravam as sombras que se estendiam a caminho do horizonte.
Cortando o tempo parado, surgiu uma mulher caminhando ao encontro do nada parecendo querer ser engolida na tarde que se apagava.
Eu, que o acaso atirara para a cena melancólica, estava esculpido na esquina de duas ruas anónimas. O alcatrão latejava no negro inverosímil da rua. Quando a mulher se aproximou da esquina-centro-do-mundo que me prendia à vida, reparei que a sua beleza irradiava uma serenidade triste e impenetrável. Uma imensidão de luz transportando a saudade que os dias tatuaram na sua esfinge primitiva.
Petrificado, como lagarto hibernando na noite longa e fria, vi-a aproximar-se da esquina que não ousara dobrar, e fixar os olhos naquele que já não era eu. O tempo ignorara o movimento astral e fizera repousar em mim uma solidão possuída pelo sonho, onde o passado e o futuro se extinguiram na desordem inútil da divindade.
Por favor, dirigiu-se-me como uma sereia que se esmera por atrair os ouvintes para o fundo do ser, sabe-me informar onde se situa a rua dos fazedores de sonhos? As nuvens aceleraram no céu esbranquiçado da tarde. A perplexidade da conjuntura atingiu-me como se um rinoceronte vadio me tivesse golpeado as entranhas. Atropelado os pensamentos.
Fazedores de sonhos? Fazedores de sonhos? , balbuciei ruborescendo e fabricando caretas inapropriadas e convulsas no rosto apalermado que os deuses me conferiram. Não, não faço ideia de onde seja. Mas, e as palavras saíram-me sem sequer controlar o seu emergir lamacento do aparelho vocal, sei muito bem onde fica a rua dos paralelepípedos veludosos. É a estreita azinhaga onde descanso os meus dias sem sentido. Interessante, interessante, retorquiu a mulher que já representava o amor absoluto da minha existência, muito interessante.
Demos as mãos e fomos até minha casa. A noite, que adivinhara a hierofânica convergência, envolveu o que nunca pudera intuir na comunhão das iniquidades.
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