Saltar para: Posts [1], Pesquisa e Arquivos [2]


Confortável crepúsculo

por vítor, em 11.07.23

 



Confortável crepúsculo que te introduz

Na noite velha. Gafanhotos de metal assomam-se por entre a chuva cansada

Que asperge as ostras renegadas, cidades condicionadas aos tempos rudes de antanho. O que a noite rege trará novas feitiçarias aos nossos olhos e rasgará cicatrizes de vinho nos calcanhares dos que calcam o chão consagrado. Assim renegamos o vírus que se desprende da pele e oraremos sem dor ao longo do caminho ensanguentado. Viagem ao corpo impróprio do anacoreta sem rosto, à superfície áspera da pele escamosa e queimada pelo tempo inclemente dos animais sem linguagem. Quando viramos a embarcação para Levante, os rios parecem desenhar deltas pantanosos na imaginação dos peixes. Navegamos, então, com o vento pela proa, os cabelos soltos enredados no mastro que se ergue do cavername, a vontade de enfrentar o mar imenso. A vontade de erguer os braços ao teu encontro. O cobalto que tinge as águas inquietas é um convite à nossa cumplicidade letal, a possibilidade de continuarmos juntos através das marés inúteis revela a profundidade do oceano emético do amor. Continua com as mãos rente à face das ostras vagabundas repetindo os sinais que ocorrem no final da tarde adormecida. Ninguém sabe como se chamava o silêncio ardente que flutuava na planície do aquário. Ninguém é capaz de criar uma imagem do passado quando caminha para trás: é do futuro que as rosas cobardes enleiam as pessoas inertes. É do futuro que as tempestades arrancam as memórias travestidas de verdade. A ti quero enraivecido de desejo.

Não podemos esquecer os tormentos da caminhada que iniciámos juntos: a dor de desistir conduz-nos ao vazio das horas inacabadas, da impossibilidade hiante das criaturas insanas. Nunca seremos o que nunca fomos quando se vê ao longe a intensa claridade da morte.



14.6.23

Autoria e outros dados (tags, etc)

publicado às 17:59

O cabelo de Bowie

por vítor, em 09.06.23

O cabelo cai-me pelo peito,



Bowie soa no spotify do telemóvel. Angel or devil

I don`t care. Como já acontece

anos, és tu que danças à minha volta com pentes

E tesouras enquanto cortas o meu longo cabelo.

Estamos no meio do pomar de laranjeiras, as moscas

Pousam-me no peito desnudo, chatas, o Sol torra

E eu em cuecas sentado numa cadeira branca.

Quando me penteias com as mãos abertas e me acaricias

O couro cabeludo, sinto-me a flutuar com os pássaros

Que visitam as laranjeiras. Corta, corta, corta e o cabelo cai

Até ao chão rodopiando na terra escura. Angel or devil

I don`t care, o Sol escalda! Curto? Sim que o verão é quente.

Corta, corta, corta e penteia: com o pente de osso e as mãos em pente.

As moscas pousam na pele e enxoto-as. O cabelo rebola em madeixas

Pelo corpo até ao chão. Rodopia ao vento entre as árvores cansadas.

Quando, os que dançam na tarde, consideram a obra razoável,

Retiro a toalha dos ombros e sacudo-a. Várias vezes. Sacudo o corpo.

O cabelo atinge o solo como cortina em contraluz.

Enquanto recolhes os apetrechos, apanho o cabelo do chão

E levo-o para o caixote do lixo. Uma parte de mim é lixo!

Angel or devil I don`t care.



Monte Gordo 21/6/22

Autoria e outros dados (tags, etc)

publicado às 14:18


Não há, não conheci ainda, ninguém como eu a cozinhar couve dourada, a bem da verdade, não se trata de couve, mas de repolho. Talvez porque tenha sido eu a inventar a receita. E é tão fácil confecionar! Talvez por ser tão fácil, ninguém se interesse por aprender a cozinhá-la. A facilidade é uma impostora e, por isso, afasta os que procuram. Aloura-se, no azeite, a cebola em rodelas finas, junta-se o repolho também cortado em rodelas. Quando o repolho fica cozido, junta-se-lhe mostarda de Gijon, quer dizer, de Dijon, e curcuma bem amarela qb. Mistura-se tudo bem com uma colher de pau (a mesma colher com que se iniciou o alourar da cebola) e acrescenta-se o sal. Pouco, que os tempos não estão fáceis para o sal e para os seus apreciadores. A saúde escraviza-nos. Finalmente juntam-se os ovos mal batidos com pimenta preta e folhas de orégão. Sempre revolvendo todo o composto, desliga-se o fogão quando o ovo está cozido. O resultado é uma fusão deliciosa que espanta sempre os comensais. O que não correu nada bem da última vez foi que quando guardava a mostarda no frigorífico a deixei cair no meio da cozinha: havia vidros e mostarda por todo o lado. Depois de tudo limpo, vidros e vidrinhos difíceis de encontrar espalhados pelo chão, juntei-me à mesa feliz que me acolheu como a um herói.



Da cozinha escapava-se um ligeiro odor a mostarda.

Autoria e outros dados (tags, etc)

publicado às 14:16

O cru e o frito

por vítor, em 09.06.23






O peixe frito, carapau da costa, para ser sincero, considerava-se tão inteligente, tão lendário, que não admitia ser apresentado conjuntamente com salada. A sua singularidade era o orgulho da tribo, vincava de forma clarividente a clivagem entre o cru e o frito.






Autoria e outros dados (tags, etc)

publicado às 14:10

...

por vítor, em 09.06.23




Prolongar uma esperança vã é uma dor esmagadora para quem a espera.














 



 







Autoria e outros dados (tags, etc)

publicado às 14:06

Do Determinismo Literário

por vítor, em 02.06.23

 



A cena literária nacional é tão pequena, tão circunscrita, que, quando te pões a falar mal de alguém, se te descuidas, já estás a falar mal de ti próprio. E, para teu alívio, e espanto, isso sabe-te tão bem!

A literatura deixou de servir para inquietar ou contaminar. Sabemos, no entanto, que os agentes literários, leitores, escritores, editores, livreiros, críticos, entidades oficiais e oficiosas, premiadoras do mérito e do demérito, formatados pelas correntes redutoras dos meios artísticos, ao menor desvio da regra não inscrita, do caminho já pisado, fremem de indignação e malham

nos que se atravessam nesta estrada da inquietude oficializada e canónica.

Nada há de mais perturbador do que um sujeito em contramão na

autoestrada. Nadando contra a corrente do rio grosso e manso.

O novo escritor será um mártir literário. Não lhe bastará a pobreza e a inutilidade das escritas, ainda precisa de ser maltratado por leitores, pares e críticos. Quanto mais desconsiderarem e rebaixarem a sua escrita, mais feliz se sentirá. Como a um mártir, o castigo só reforça o martírio: curiosamente, e a cultura judaico-cristã-islâmica é terrível e exemplar nestes domínios do martírio, castigador e castigado, escritor e leitor, retiram prazer do castigo.

Quando alguém elogia o escritor, por caridade, dever ou admiração, vê-lo-emos a planar, sem chão, vazio e aparvalhado. Quase sempre, enveredará por outros caminhos que se afastem da bajulação do leitor: o leitor é, continuará a ser, por incrível que pareça, a medida de toda a escrita.

Criador e criação, sendo um outro e outro um, numa dança sem fim rodopiando convulsivamente ao som de uma música gravada a fogo na memória coletiva da humanidade. A lassidão das peias deterministas, que libera loucos e dementes das pesadas correntes do determinismo social, faz destes os potenciais inovadores mais fecundos de entre os criadores. As obras de ponta serão o resultado, cruel e vazio, de mergulhos, em apneia, de pescadores descomprometidos no profundo e vasto inconsciente. Pescadores

sem rede, de pérolas inúteis.

Tudo o que fazes se liberta do que somos. A autoria é sempre uma obra coletiva sem autor. Inimputável. O que a IA nos vai trazendo, aos trambolhões, não é senão o acentuar e adensar deste pastoso manto que vai transportando e moldando a nova literatura. Resta-nos a voz. A voz que a tecnologia nunca encontrará.



(texto, sobre o tema "o fim da literatura", da Espúria, lido pelo Paulo Moreira no encerramento da Feira do Livro de Olhão)

Autoria e outros dados (tags, etc)

publicado às 15:33

estranha luz

por vítor, em 09.05.23
Há uma certa e estranha luz que incide nos corpos nos finais do inverno e impõe neles uma dor antiga, vinda do fim dos tempos, que ninguém consegue explicar. Depois, quando os dias crescem e as noites deixam de assustar os pássaros, e as flores rebentam as cápsulas prenhes, soltam-se as vestes e os jovens riem sem conhecer o porvir. Nessa nova claridade dos dias maiores, os velhos viajam como se o passado fosse uma terra prometida.

As sombras não calam as vozes que iluminam as vidas de quem amanhece todos os dias. É um engano meu amigo. A aurora é um resgate impossível do nada. Dançamos como pedras antigas. Somos o rodopio do vento burilando o tempo.

Tavira, 2 de fevereiro de 2023

Autoria e outros dados (tags, etc)

publicado às 01:08

Rio da Morte

por vítor, em 09.05.23

O pus que escorre desta ferida aberta inicia o rio. Onde começa a dor de me tornar velho. Sim, na ferida aberta, a nascente deste rio sem esperança, a viagem cansada por terras estranhas, traga a planície lenta em meandros de sangue azul cobalto desenhando veias e artérias rompendo a pele. O mar imenso da morte espera a corrente que o procura. Tudo desliza para o mar sem fim. Tudo se despenha na renúncia de continuar. É desespero e sapiência a torrente de lama que arrasta os últimos a sorrir. A cobarde morte esconde o trabalho intenso dos vermes devorando a carne devoluta. A podridão da vida.



Oceano emético de pus iridiscente, lavoura sanguinolenta castrando os antigos temores a deus. Nebulosa opaca ardendo no fim dos dias, atraindo os ossos dos defuntos ao abismo das árvores petrificadas, onde o vento range nas folhas tatuadas pelo verbo insano, verborreia inútil no clamor do silêncio. A morte sempre vence as desvalidas carcaças nauseabundas, envergando os paramentos dos profetas fraudulentos como são todos os videntes encartados.

Quando o rio se perde na lagoa que engole a vida, os patrões da noite sem memória atingem orgasmos monumentais roçando o renascimento das almas eméritas. São portas sólidas as que te oferecem para arrombar.

16/17.2.2023

Autoria e outros dados (tags, etc)

publicado às 01:07

heróis de antanho

por vítor, em 09.05.23

Se a superação do que julgavas impossível te levar ao trono dos heróis de antanho, podes acenar do alto dos teus sonhos aos que te precederam na cruel jornada.

Autoria e outros dados (tags, etc)

publicado às 01:06

Cantando o vazio dos dias

por vítor, em 09.05.23

Queria cantar eventos grandes, dignos de um aedo, mas na minha vida tudo o



que tem acontecido tem sido normal e indistinto. Os meus cavalos mastigam romãs enquanto viajo por pensamentos ignóbeis. Quando vejo o futuro vir ao meu encontro, reparo nos dias inúteis que me esperam. São todos dias sem memória e que se não fossem vividos nada acrescentariam à triste vida que prossigo. Se fosse um homem habilidoso, poderia editar o futuro e transformá-lo a meu favor. Os meus cavalos gostam de romãs. E ouço-os ruminar a carne granulada, sorrindo ao tempo que passa. Se parasse agora, diria que a minha vida não teria valido a pena, mas isso só o sei agora. Não poderia agir sobre nada, como não se pode editar o que vai acontecer sem o conhecer. Agora, que encaro o futuro como se fosse o presente exposto num ecrã à minha frente, posso acreditar na sua manipulação, na possível mutação dos dias inúteis. Poderia, até, tornar muitos dias em dias interessantes e memoráveis. Dias sem história que se pudesse contar aos amigos depois de os ter vivido. Com gargalhadas de gente solitária e ensimesmada. Gente feliz com futuros radiosos resvalando para abismos perplexos. Multidões ululantes construindo felicidade à medida, para todos. Dias repletos de eventos excecionais. Momentos de alegria e paz, de ódio e iniquidade, como são todos os que ficam na consciência coletiva da humanidade. O meu futuro será o meu passado. Continuarei, com a tristeza dos dias comuns, a criar cavalos. As romãs que os equinos devoram livrar-me-ão da insuportável imortalidade.



26.02.2023

Autoria e outros dados (tags, etc)

publicado às 01:03


Mais sobre mim

foto do autor


Subscrever por e-mail

A subscrição é anónima e gera, no máximo, um e-mail por dia.


Arquivo

  1. 2023
  2. J
  3. F
  4. M
  5. A
  6. M
  7. J
  8. J
  9. A
  10. S
  11. O
  12. N
  13. D
  14. 2022
  15. J
  16. F
  17. M
  18. A
  19. M
  20. J
  21. J
  22. A
  23. S
  24. O
  25. N
  26. D
  27. 2021
  28. J
  29. F
  30. M
  31. A
  32. M
  33. J
  34. J
  35. A
  36. S
  37. O
  38. N
  39. D
  40. 2020
  41. J
  42. F
  43. M
  44. A
  45. M
  46. J
  47. J
  48. A
  49. S
  50. O
  51. N
  52. D
  53. 2019
  54. J
  55. F
  56. M
  57. A
  58. M
  59. J
  60. J
  61. A
  62. S
  63. O
  64. N
  65. D
  66. 2018
  67. J
  68. F
  69. M
  70. A
  71. M
  72. J
  73. J
  74. A
  75. S
  76. O
  77. N
  78. D
  79. 2017
  80. J
  81. F
  82. M
  83. A
  84. M
  85. J
  86. J
  87. A
  88. S
  89. O
  90. N
  91. D
  92. 2016
  93. J
  94. F
  95. M
  96. A
  97. M
  98. J
  99. J
  100. A
  101. S
  102. O
  103. N
  104. D
  105. 2015
  106. J
  107. F
  108. M
  109. A
  110. M
  111. J
  112. J
  113. A
  114. S
  115. O
  116. N
  117. D
  118. 2014
  119. J
  120. F
  121. M
  122. A
  123. M
  124. J
  125. J
  126. A
  127. S
  128. O
  129. N
  130. D
  131. 2013
  132. J
  133. F
  134. M
  135. A
  136. M
  137. J
  138. J
  139. A
  140. S
  141. O
  142. N
  143. D
  144. 2012
  145. J
  146. F
  147. M
  148. A
  149. M
  150. J
  151. J
  152. A
  153. S
  154. O
  155. N
  156. D
  157. 2011
  158. J
  159. F
  160. M
  161. A
  162. M
  163. J
  164. J
  165. A
  166. S
  167. O
  168. N
  169. D
  170. 2010
  171. J
  172. F
  173. M
  174. A
  175. M
  176. J
  177. J
  178. A
  179. S
  180. O
  181. N
  182. D
  183. 2009
  184. J
  185. F
  186. M
  187. A
  188. M
  189. J
  190. J
  191. A
  192. S
  193. O
  194. N
  195. D
  196. 2008
  197. J
  198. F
  199. M
  200. A
  201. M
  202. J
  203. J
  204. A
  205. S
  206. O
  207. N
  208. D
  209. 2007
  210. J
  211. F
  212. M
  213. A
  214. M
  215. J
  216. J
  217. A
  218. S
  219. O
  220. N
  221. D
  222. 2006
  223. J
  224. F
  225. M
  226. A
  227. M
  228. J
  229. J
  230. A
  231. S
  232. O
  233. N
  234. D